segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

O testa-de-ferro

Quando o professor Pedro Mateus me desafiou a elaborar uma entrada deste breviário sobre a expressão “testa-de-ferro”, estávamos longe de imaginar a dificuldade da tarefa que se seguiria. Todos sabemos que a expressão é usada para designar alguém numa posição nominal de liderança que não tem o poder efectivo, funcionando como uma fachada de outrem. O curioso foi a extraordinária dificuldade de situar no tempo a origem da expressão.

Todos os dicionários me dirigiram no sentido de um sinónimo, “carranca”, e nenhuma das enciclopédias que consultei apontava qualquer referência à origem do termo. Assim, depois de muita pesquisa, o testa-de-ferro acabou por dar origem a duas entradas neste breviário, que são aqui publicadas juntas neste artigo. A primeira, diz respeito ao significado da palavra testa-de-ferro, a segunda, ao homem que deu origem a que esta expressão se utilizasse no castelhano “testafierro” e no português: Emanuel Felisberto de Sabóia, chamado o Testa de Ferro.

9 – Testa-de-ferro, carranca, títere, aríete.

A primeira aparição da expressão testa-de-ferro aparece associada ao aríete, uma máquina de guerra inventada pelos romanos que servia para arrombar portas de fortalezas, esta máquina era constituída por um forte tronco de freixo com uma testa de ferro ou de bronze que tinha geralmente a forma da cabeça de um carneiro. O nome aríete vem do latim “ariete” que significa carneiro. Nos navios de guerra da antiguidade também se usavam estas testas de ferro, em esporões que eram colocados nas proas das trirremes e que tinham como propósito arrombarem os navios adversários na altura da colisão.

A “carranca”, “figura de proa” ou “leão de barca” é uma figura decorativa esculpida em madeira, frequentemente com formas femininas ou animais, que se usou na proa os navios entre os séculos XVI e XIX. A prática foi introduzida com os galeões do século XVI apesar de anteriormente a isso, alguns tipos de navios terem alguma espécie de decoração ou ornamentação da proa.

Tal como a decoração da popa, a carranca tinha por objectivo indicar o nome da embarcação a uma sociedade iletrada, como era a de 1500, para além de demonstrar a riqueza e o poder do armador. No auge do período Barroco, alguns navios ostentavam figuras de proa gigantescas que pesavam algumas toneladas e chegavam a ter réplicas em ambos os lados do casco.

Uma figura enorme, esculpida em madeira maciça e cravada no topo da proa, prejudicava as qualidades de flutuabilidade do barco. Este facto, aliado ao custo fez com que as carrancas fossem feitas significativamente mais pequenas durante o Séc.XVIII, caindo em desuso por volta de 1800. Depois das guerras Napoleónicas, houve um período de revivalismo desta forma decorativa mas as figuras eram elaboradas apenas da cintura para cima, em lugar das esculturas completas e maciças usadas anteriormente. Os Clippers das décadas de 1850 e 60 tinham figuras completas mas estas eram relativamente pequenas e leves. As figuras de proa enquanto tal desapareceram com o fim dos grandes veleiros. Os primeiros navios a vapor, no entanto, eram decorados com frisos dourados ou escudos de armas nas suas proas. Esta prática durou até próximo da I Grande Guerra.

A palavra carranca também é usada para designar uma marioneta ou um fantoche, sendo sinónimo, neste contexto, de “títere”. Também pode ser sinónimo de caraça, ou, em castelhano, “tapadera”.

Testa-de-ferro aparece pela primeira vez no castelhano “testafierro” por transposição directa do italiano “testa di ferro” do cognome da figura que se segue, que, apesar de ter um significado diferente na língua original, se adequou ao significado que se pretendeu dar a esta expressão, que é o que actualmente conhecemos. Em italiano, a um “testa-de-ferro” chama-se um “uomo di paglia”, (homem de palha), e “testa” é “cabeça”.

10 – Emanuel Felisberto de Sabóia, chamado Testa di Ferro
Emanuel Felisberto, dito Testa di Ferro, nasceu em Chambéry a 8 de Julho de 1528 e faleceu em Turim a 30 de Agosto de 1580, foi Conde de Asti, Duque de Sabóia, Príncipe de Piemonte e Conde de Aosta, Moriana e Nizza. Foi também Rei titular de Chipre e Jerusalém onde nunca teve qualquer poder, por isso, o seu nome é até hoje usado para designar alguém que é titular de um lugar de liderança mas que não tem poder efectivo. A seu cognome teve origem no elmo de armadura, que usava a cavalo, que era completamente fechado, como uma cabeça de ferro.
Sendo o segundo filho de Carlos III de Sabóia e de Beatriz de Portugal, foi destinado à carreira eclesiática mas a morte do irmão Ludovico em 1536 destinou-o a herdar o Ducado, transformado em campo de batalha entre as forças francesas e espanholas e ocupado pelas tropas de Francisco I.

Iniciado muito jovem na vida política e militar, em 1543 entrou ao serviço dó Imperador Carlos V, irmão da sua avó Leonor. Com o objectivo de recuperar as suas terras, tomou parte nas vitórias imperiais de Ingolstadt, em 1546, e Muhlberg, em 1547 e nas sucessivas campanhas contra as tropas francesas que culminaram nas batalhas de Metz, em 1552, e Bra, em 1553.
Em 1553 foi nomeado Lugar-Tenente Geral e Comandante Supremo do exército espanhol na Flandres e em 1556 recebe de Filipe II de Espanha, I de Portugal, o cargo de Governador dos Países Baixos. Em 1557, no retomar das hostilidades que se seguiu às efémeras tréguas de Vaucelles, inflige às tropas francesas, guiadas por Ana de Montmorency e Gaspard de Colugny uma pesada e decisiva derrota. O resultante tratado de paz de Cateu-Cambrésis (1559), premiou Emanuel Felisberto com a restituição do seu Estado com excepção de algumas fortalezas, que ficariam aida durante uns anos em mãos espanholas e francesas, e do território de Genebra, ao qual foi reconhecida a independência.
A pacificação foi selada com o matrimónio do Duque de Sabóia com Margarida de Valois, filha de Francisco I de França.

Em 1574, Emanuel Felisberto consegue obter do Rei Henrique III de França as cidades de Savigliano e Pinerolo e em 1573, recebe da Espanha as fortalezas de Asti e Santhià. Tentou longamente, sem sucesso, entrar na posse dos Marquesatos de Monferrato e Saluzzo.
Convencido de que a única possibilidade de sobrevivência do Ducado estava na unificação politico-militar dos inúmeros feudos que o compunham e na concentração do poder na coroa, Emanuel Felisberto aboliu as Congregações Gerais, (uma espécie de estados gerais da província que haviam muitas vezes limitado o poder dos seus predecessores), reformou os estatutos municipais e feudais, suprimiu as antigas autonomias e centralizou o controlo financeiro. Reforçou o elemento piemontês do Ducado com a imposição da língua italiana na legislação e com a tranferência da Capital de Chambéry para Turim, no ano de 1562.

Emanuel Felisberto procurou por todos os meios dar um impulso à economia do Ducado, dilacerada pela devastação da guerra e da ocupação estrangeira. Favoreceu a instalação da canalização, encorajou a imigração de artesãos e colonos, aboliu a servidão da gleba, promoveu o desenvolvimento das manufacturas com isenções e subvenções e multiplicou os institutos de crédito. O resultado desta política foi apenas parcial, mas, em todo o caso, deu ao Ducado os recursos necessários para a constituição de um pequeno exército baseado nas milícias provinciais em vez das anteriores levas feudais e exércitos de mercenários. As fortificações também receberam um novo impulso e a pequena frota naval que constituiu distinguiu-se na batalha de Lepanto, em 1571.

No campo religioso, Emanuel Felisberto seguiu o movimento da Contra-reforma, aplicando conscienciosamente os decretos do Concílio de Trento, mas nunca renunciando à defesa dos direitos do Estado contra a ingerência da Igreja e concedeu aos habitantes dos vales alpinos uma relativa liberdade de culto. Também se ocupou da instrução, transferindo o Studio (Universidade) de Mondovi para Turim em 1566 e potenciando-o com a contratação de professores estrangeiros.

À data da sua morte, Emanuel Felisberto deixou um estado saudável e com capacidade para assumir o papel de potência média nas relações de poder da Itália e da Europa dos Séculos XVII e XVIII. Sucedeu-lhe o único filho, de 18 anos, Carlos Emanuel de Sabóia.

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