domingo, 27 de maio de 2007

Viriato, o Lusitano

No que toca a grandes líderes, o território onde se encontra hoje implantado Portugal tem tido a sua quota parte. Não me restam dúvidas de que se fossemos um país anglófono, muitos deles teriam já merecido ser alvos de argumentos de filmes como o Braveheart do Mel Gibson, cujo protagonista, William Wallace, ainda será contemplado com uma entrada neste breviário. O mais distinto e lendário destes líderes míticos é sem sombra de dúvida o Lusitano Viriato, cuja história se viu tristemente utilizada instrumento propagandístico pelo Estado Novo, da mesma forma que o Nacional Socialismo Alemão utilizou o guerreiro germânico Hermann ou o Fascismo Italiano utilizou a figura de Júlio César.

Ora, Viriato nem é Português nem Espanhol, foi Lusitano, membro de um povo que habitava uma zona da península que provavelmente se estendia do Algarve ao Rio Douro e de Toledo a Sevilha. A lenda atribui-lhe o nascimento nos montes Hermínios, mas não se sabe ao certo qual foi a localidade do seu nascimento, mas sabe-se que a propaganda do Estado Novo espalhou largamente esta teoria, talvez para localizar o nascimento deste herói mítico o mais próximo possível de Santa Comba.

A vida de Viriato desenrolou-se durante o período em que os Romanos desenvolveram o seu esforço militar de ocupação da Península Ibérica. Este esforço desenvolveu-se desde muito antes de Viriato nascer e decorreu ainda por longos anos depois da sua morte, em 139 a.C.. Seis décadas após o desaparecimento de Viriato, foi nas forças da resistência Lusitana que Quinto Sertório encontrou apoio na sua luta contra Roma, entre 80 e 72 a.C., esta resistência acabaria por se manter ainda por mais uma década até ser finalmente anulada durante a presença de Júlio César como Governador da Hispânia Ulterior, em 61 a.C..

Ao longo dos quase dois séculos que os Romanos demoraram a obter o domínio da região Lusitana houve um líder que se destacou e que impressionou os historiadores Romanos, talvez mais do que qualquer outro líder de qualquer outro povo que os Romanos conquistaram por essa Europa fora, esse líder foi Viriato, cujo nome advém das vírias, adornos em forma de bracelete que os líderes guerreiros Lusitanos ostentavam nos braços como símbolo do seu poder. Imagine-se a influência que Viriato conquistou para lhe ser atribuído o nome do próprio símbolo da liderança militar.

Vale a pena conhecer a vida deste personagem histórico, já Cervantes no seu D. Quixote, quando coloca o cónego a aconselhar D. Quixote a ler os feitos dos grandes personagens históricos, ao invés de se perder na ilusão dos contos de cavaleiros andantes, põe Viriato à frente de um rol de importantes heróis militares que vão da antiguidade clássica à época medieval:

“Eia, Senhor D. Quixote! Tenha dó de si mesmo, refugie-se no seio da discrição e procure usar da muita com que o seu foi servido brindá-lo, ocupando o mui feliz talento do seu engenho em leituras outras, que redundem em proveito da sua consciência e aumento da sua honra! E se, apesar de tudo, levado pela sua natural inclinação, quiser ler livros de façanhas e de cavaleiros, leia, nas Sagradas Escrituras, o dos Juízes, onde encontrará verdades grandiosas e feitos tão grandiosos como destemidos. Teve a Lusitânia um Viriato; Roma, um César; Cartago, um Aníbal; a Grécia, um Alexandre; Castela, o Conde Fernán González; Valência, o Cid; Andaluzia, um Gonzalo Fernández; a Extremadura, Diego Garcia de Paredes; Jerez, um Garci Perez de Vargas; Toledo, um Garcilaso; Sevilha, um D. Manuel de Léon!... Os seus valorosos feitos constituirão entretenimento, aprendizagem, deleite e admiração aos mais altos engenhos que os lerem! E essa, sim, será leitura digna do bom entendimento de Vossa Mercê, meu senhor D. Quixote! Dela sairá erudito na História, enamorado da virtude, mestre em bondade, aperfeiçoado em costumes, valente sem temeridade, ousado sem cobardia… E tudo isso para honra de Deus, para proveito seu e fama de La Mancha, donde, como é sabido, lhe advém a Vossa Mercê seu princípio e sua origem.”

Os historiadores antigos apresentam Viriato como uma personalidade forte e aglutinadora, semelhante à de outros chefes militares, como Alexandre, Aníbal, Amílcar, Quinto Sertório, Pompeu ou o próprio Júlio César. O seu poder pessoal e a sua influência nos seus conterrâneos seria, decerto, fascinante. Esse facto, aliás percebe-se nos relatos do majestoso funeral que o exército Lusitano lhe consagrou.

Foi o fundador da aplicação militar da guerra de guerrilha tal como a conhecemos hoje. Pese embora haver referências anteriores ao mesmo estilo de acção militar, por exemplo nas campanhas de Alexandre, o Grande, ou da Guerra de Jugurta, em África, foi o estilo de táctica militar de Viriato que passou à história como modelo de guerrilha e que se perpetuou até aos nossos dias.

Morreu às mãos de alguns dos seus camaradas de armas, que o assassinaram. De acordo com a história, (que foi provavelmente inventada para ocultar a vergonha Romana causada pela participação em tal tipo de acções), os assassinos não receberam qualquer recompensa, pois o Senado Romano considerou a sua acção indigna. Séculos mais tarde, os historiadores resumiriam esta atitude Romana numa frase que espelha perfeitamente o sentido dessa decisão do Senado:

“Roma não paga a traidores.”


20- Viriato, filho de Comínio

Viriato, filho de Comínio, nasceu provavelmente por volta de 179 a.C., na localidade de Aritius Vetium (Alvega), É duvidoso que tenha sido pastor nos Montes Hermínios, como conta a lenda porque teve acesso a elementos culturais e ensinamentos militares que lhe permitiram transformar tribos de pastores num exército consistente e desenvolver uma guerra de guerrilha baseada em elementos estratégicos e tácticos extremamente sofisticados para a época em que viveu, adicionalmente sabe-se que detinha conhecimento da língua Latina e que foi capaz de abordar os aspectos diplomáticos que o levaram, pelo diálogo mantido com os Romanos, a ser designado, a certo ponto, “Amicus Populi Romani”, que era o título dado aos chefes tribais e aos reis que eram considerados aliados em paz com Roma.

No final da segunda Guerra Púnica com Cartago, cerca de 200 a.C., Roma dominava o Leste e o Sul da Península Ibérica, nesta guerra já haviam participado, integrando o exército Cartaginês, grupos de guerreiros Lusitanos, Celtiberos e Celtas, oriundos dos povos que dominavam o resto do território peninsular. Os Romanos prosseguiram o seu avanço militar no sentido de conseguir o domínio do total da península a que chamavam Hispânia, mas a ocupação foi obtida dificilmente pois os povos indígenas, dos quais se destacaram os Lusitanos, opuseram feroz oposição às Legiões Romanas.

Após cinquenta anos de acções militares romanas, em 150 a.C, o pretor romano Sérvio Sulpício Galba, Governador da Província Romana da Hispânia Citerior, aceita uma proposta de paz, que incluía o desarmamento dos lusitanos. Vergonhosamente, Galba não cumpriu a sua parte do acordo, massacrando de cerca de 10 mil lusitanos e enviando outros 20 mil para a Gália, onde foram vendidos como escravos. Um guerreiro chamado Viriato foi um dos poucos sobreviventes a esta chacina. A guerra de resistência continuou.

Em 147 a.C. os Lusitanos encontravam-se cercados por Caio Vetílio no Vale do Bétis, na Turdetânia. Estando prestes a negociar uma rendição. Viriato aparece na História quando se opõe a isso, lembrando aos seus companheiros a traição anterior de Galba. Os Lusitanos fogem e reorganizam-se. Depois desse evento, a fama de Viriato como guerreiro e estratega foi crescendo entre as várias tribos lusitanas, o que lhe permitiu tornar-se o líder efectivo de uma coligação de tribos lusitanas, pela primeira vez na história unidas por um objectivo comum.

Em 146 a.C., Viriato derrota os romanos no desfiladeiro de Ronda, que separa a planície do Guadalquivir da costa marítima da Andaluzia, fazendo nas fileiras inimigas uma espantosa chacina, contaram-se milhares de Romanos mortos, incluindo o próprio Vetílio.

Em 145 a.C., Quinto Fábio Máximo, irmão de Cipião, "O Africano", é nomeado Cônsul da Hispânia Citerior e é encarregado da campanha contra Viriato, sendo-lhe entregue o comando de duas legiões. Ao princípio tem algum êxito, mas Viriato recupera e no final de 143 a.C. volta a derrotar os romanos em Baecula e obriga-os a refugiar-se em Córdova. Viriato entra triunfante na Província Romana da Hispânia Citerior e exige tributo às cidades que reconhecem o Governo de Roma.

As notícias do êxito do líder Lusitano, vevam as tribos celtibéricas da Hispânia Citerior, entre as quais se contavam os Belos, os Titos e os Arevacos a revoltar-se contra os Romanos, iniciando uma guerra que só terminaria em 133 aC, com a queda de Numância.

Em Roma, organizam-se mais quatro Legiões para uma nova expedição contra os Lusitanos, são enviadas para a Hispânia sob comando do novo Cônsul Fábio Máximo Serviliano. Em 140 a.C., estas Legiões são derrotadas por Viriato, cujas tropas matam mais de 3.000 romanos, encurralando o inimigo e podendo destroçá-lo. O Lusitano, no entanto, deixou Serviliano libertar-se da posição desastrosa em que se encontrava, em troca de promessas e garantias de os lusitanos conservarem o território que haviam conquistado. Em Roma, esse tratado de paz foi mais tarde considerado humilhante e vexatório, como consequência, o Senado romano volta atrás na sua palavra, e declara guerra a Viriato.

Entretanto, dá-se a destruição de Cartago, o principal centro de oposição ao poder de Roma no Mediterrâneo. Este evento constituiu o ponto de viragem da guerra, pois Roma pôde reforçar as suas tropas nas restantes frentes, incluindo a frente Ibérica.

Em consequência da atenção e poder militar concentrados de novo na Ibéria, para além da desmilitarização Lusitana que entretanto sucedeu ao tratado de paz, as tropas Romanas conseguem levar Viriato a refugiar-se a norte do rio Tejo, num lugar denominado "Monte de Vénus", localizado provavelmente entre Cáceres e Badajoz. Face aos avanços do General Romano Quinto Servílio Cipião, entretanto reforçado por tropas comandadas por Popílio Lenas, Viriato, chegando a um impasse, apesar de manter alguma superioridade militar, enviou-lhe três emissários, Audax, Ditalco e Minuro, para negociar a paz, mas estes foram subornados e convencidos a matar Viriato.

Viriato foi assassinado durante o sono, por estes mesmos três emissários. Após o assassinato, os traidores refugiaram-se junto do Procônsul Romano Cipião, reclamando o prémio prometido. No entanto, o procônsul ordenou a sua execução. De acordo com historiadores posteriores, terão ficado os três expostos em praça pública com os dizeres: "Roma não paga a traidores".

O exército Lusitano, chefiado por Táutalo, até então, braço direito de Viriato, tentou ainda uma incursão contra os territórios do Sul, mas foi vencido. Depois destes acontecimentos, que tiveram lugar em 139 a.C., Décius Június Brutus conseguiu finalmente marchar para o Norte, através da Lusitânia central, e dominar a Gallaecia. Começou então, efectivamente, a ocupação romana do extremo Ocidental da Hispânia Táutalo foi capturado alguns anos mais tarde.

Após a governação de Júlio César, o Imperador Augusto fundou a cidade de Emérita Augusta (hoje Mérida), no ano 25 aC, que, a partir de 5 a.C. se tornou a capital da Província Romana Lusitânia.

sábado, 26 de maio de 2007

O Príncipe Perfeito

Poucos homens marcaram mais o seu tempo e a história da Humanidade que D. João II, Rei de Portugal, a quem os inimigos apelidaram de “o Tirano” e os amigos de “o Príncipe Perfeito”. Tem sido referido que “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel, escrito cerca de 20 anos após a sua morte, pode ter sido, em parte, baseado na sua pessoa e nos métodos novos que introduziu na forma de fazer política e reger o reino.

Tendo sido contemporâneo dos Médicis, D. João II foi o mais perfeito executante do conceito de pragmatismo político que se desenvolveu naquela época na Europa. Exemplificou, em Portugal, o poder do príncipe renascentista, contrastando o seu reinado com o do seu antecessor, D. Afonso V, que foi, também ele, um expoente, mas de outra época, a dos cavaleiros medievais.

Para D. João II, o poder radicava todo na instituição real, por isso, baseou a sua acção na repressão do poder dos grandes, sem nunca se ter apoiado nos pequenos, alterando radicalmente a relação de poderes que existia nos tempos medievais que precederam o seu reinado.

Nos primeiros tempos do seu reinado, surge em Portugal uma expressão nova: “Sua Majestade Real”, que representa um conceito de realeza completamente novo. Um dos seu biógrafos, Rui de Pina escreveu que: “Sendo senhor dos senhores, nunca quis nem parecer servo dos servos”.

Hoje, apresento-vos o Príncipe Perfeito.


18- D. João II de Portugal, o Príncipe Perfeito

Filho do Rei Afonso V de Portugal e de Isabel de Coimbra, o décimo terceiro Rei de Portugal, D. João II, nasceu em Lisboa, no Paço das Alcáçovas, a 3 de Maio de 1455.

Depois da tentativa falhada de conquista de Tânger em 1464, D. Afonso V dirige uma campanha contra Arzila em 1471, na qual é acompanhado pelo Príncipe. Depois da tomada de Arzila, que também resultou na ocupação de Tânger, que entretanto foi abandonada pelos mouros em fuga, a 21 de Agosto de 1471, João II foi armado cavaleiro junto ao corpo do Conde de Marialva, que faleceu na batalha. No início do ano seguinte, casa com Leonor de Viseu, princesa de Portugal, que era sua prima direita, filha do infante D. Fernando. Fruto desta união, nasce em 1475, o infante D. Afonso.

Em 1474, assumiu a direcção da política de expansão ultramarina, enquanto D. Afonso V invadia Castela para fazer valer os direitos de sucessão sobre o trono que haviam resultado da morte de Henrique IV. A 25 de Abril de 1475, parte para Espanha para auxiliar o pai, participando a 2 de Março na batalha de Toro, na qual D. Afonso V fica gravemente ferido.

Sucedeu ao seu pai após a abdicação deste, em 1477, no entanto, D. Afonso V decidiu retornar e logo D. João II lhe devolveu o poder, só se tornando Rei após a sua morte, em 1481.

Desde o início, o jovem rei não foi muito popular junto dos pares do reino, pois mostrava-se imune a influências externas e desprezava as intrigas da corte. Os nobres mais poderosos, encabeçados por Fernando II, Duque de Bragança, temiam a sua governação. Assim que tomou as rédeas do país, o Rei provou que tinham razões para isso.

Depois de D. João II ter posto em prática uma série de medidas que transferiram poder da nobreza para a sua pessoa, começaram as conspirações contra ele. Tendo-se colocado na posição de um simples observador, João aguardou para ver o que se ia passar. Em 1483, os espiões do Rei conseguiram interceptar cartas do Marquês de Montemor, que era irmão do Duque de Bragança, dirigidas aos Reis Católicos de Espanha a propor a invasão de Portugal por tropas Castelhanas com o fito de derrubar D. João II. Em consequência disto, a Casa de Bragança foi proscrita e o Duque de Bragança, primeira figura da nobreza nacional e proprietário de quase metade do território do país, foi considerado envolvido na conspiração, julgado e executado por degolação em Évora, perante uma imensa multidão. Os bens dos Bragança foram anexados à coroa. Ao que parece, perante rumores de que João teria recompensado as testemunhas de acusação, a honestidade do julgamento foi mais tarde posta em causa, mas o facto estava criado.

Entretanto, entra em cena Diogo, Duque de Beja e de Viseu, filho do Infante D. Fernando e cunhado de D. João II, era, a seguir ao Duque de Bragança, o mais poderoso nobre do Reino, era Condestável do Reino e Governador da Ordem de Cristo. Após a execução do Duque de Bragança foi feito chefe dos descontentes e preparou uma conspiração para assassinar o Rei e o Príncipe Herdeiro, o que lhe permitiria, então, subir ao trono. Mais uma vez, D. João II toma conhecimento desta conjura através dos seus espiões. Atraindo Diogo a Palmela, ai o apunhala com as suas próprias mãos. Seguiu-se a execução de vários outros membros da alta nobreza e a fuga de muitos mais. O Bispo de Évora, D. Garcia de Meneses, que havia desempenhado um papel político importantíssimo no reinado anterior, foi envenenado na prisão. Foi ainda emitido um édito condenando à morte Isaac Abravanel, um dos mais ricos judeus da Península Ibérica, que foi acusado de financiar a conspiração, este conseguiu, no entanto, fugir para Castela, onde se refugiou junto da corte. Dedicamos a este último, uma pequena entrada biográfica no final deste tema.

De acordo com a tradição oral, D. João II terá comentado, relativamente à limpeza que fez no país: “eu sou o senhor dos senhores, não sou o servo dos servos”. Depois destes eventos, mais ninguém ousou conspirar contra o Rei, que não hesitava em fazer justiça pelas próprias mãos. D. João II tornou-se então um governante com poderes absolutos.

Tendo sido um grande defensor da política de exploração atlântica iniciada por D. Henrique, tornou os descobrimentos portugueses a sua primeira prioridade governamental e lançou Portugal na saga épica da busca do caminho marítimo para a Índia. Durante o tempo do seu reinado, Diogo Cão descobre, em 1484, a foz do Rio Congo e explora a costa da Namíbia Quatro anos depois, Bartolomeu Dias leva duas pequenas caravelas para lá do Cabo da Boa Esperança, tornando-se o primeiro Europeu a navegar no Oceano Índico. Em 1493, Álvaro de Caminha inicia a colonização de S. Tomé e Príncipe. Em seguida são enviadas as expedições de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva que atingem a Abissínia em busca do lendário Reino do Preste João, de cujos relatórios D. João II extraiu a certeza de poder atingir a Índia por via marítima.

Tendo a maior parte dos arquivos deste período sido destruídos no incêndio que se seguiu ao terramoto de 1755, e tendo D. João II sido um escrupuloso implementador do segredo de estado, permanecem desconhecidas a totalidade das descobertas e progressos feitos nesta época. Os historiadores ainda discutem a verdadeira extensão das descobertas feitas no tempo deste Rei, suspeitando que os Portugueses tivessem chegado à América antes de Cristóvão Colombo. Sabe-se que na época, os Portugueses dispunham de cálculos bastante precisos do diâmetro da Terra, e enquanto Cristóvão Colombo acreditava poder chegar à Índia seguindo para Oeste, é provável que D. João II já soubesse da existência de um continente no meio. As misteriosas viagens do Capitão Duarte Pacheco Pereira para Oeste de Cabo Verde foram possivelmente mais importantes que o que é usual supor. Tudo isto se passou numa época em que o resto do mundo ainda pensava que a Terra era plana.

Quando o piloto Genovês Cristóvão Colombo, que vivia em Portugal há dez anos se dirigiu a D. João II com o seu projecto, D. João II recusou. Colombo partia de uma suposição que o Rei Português sabia estar errada, afirmando que cada grau media 84 Km, quando na realidade, os Portugueses já sabiam que media 111 Km.. D. João II estava decidido a chegar à Índia pelo Oriente, contornando a África. Em 1492, Colombo descobre a América ao serviço de Isabel, a Católica. Na viagem de regresso, para primeiro em Lisboa, para lançar à cara do Rei o facto de este não lhe ter dado crédito quando lhe propôs aquela viagem, D. João II respondeu-lhe que, de acordo com o Tratado de Alcáçovas, aquelas terras eram da Coroa de Portugal. Parece que D. João II chegou a mandar armar navios para ocupar as terras descobertas por Colombo, mas, entretanto, entrou em negociações com Espanha para uma solução pacífica. Em resultado destas negociações surgiu o Tratado de Tordesilhas, o mundo era dividido entre Portugal e Espanha por uma linha que passava, de pólo a pólo a 370 léguas a Oeste de Cabo Verde, Espanha ficava com o que estivesse a Ocidente dessa linha e Portugal com que estivesse a Oriente. Até à sua morte, Colombo esteve convencido de que havia chegado à Índia.

A divisão do Mundo não era o único problema entre os Reinos Ibéricos, os Reis Católicos tinham várias filhas mas apenas um filho, Juan, de saúde frágil. Se Juan morresse sem deixar descendência, o mais provável seria Afonso, único filho legítimo de D. João II, tornar-se Rei, não só de Portugal, mas de toda a Península Ibérica. Esta ameaça à coroa Espanhola era real pois a filha mais velha de ambos era casada com o Príncipe Português. Fernando e Isabel tentaram por todas as vias diplomáticas dissolver o casamento, mas não tiveram sucesso. Em 1491, Afonso morre em consequência de uma misteriosa queda de cavalo durante um passeio à beira Tejo. A ligação dos Reis Católicos ao acidente nunca foi provada, mas tanto eles como a alta nobreza Portuguesa tinha muito a ganhar com isso, no caso destes últimos por esse acidente colocar em linha directa de descendência o Duque de Beja, Manuel, irmão do Duque de Viseu, que havia morrido às mãos de D. João II.

Durante o resto da sua vida, D. João II tentou legitimar o seu filho bastardo, Jorge. D. Jorge, Duque de Coimbra era filho de uma relação adúltera do Rei com D. Ana Furtado de Mendonça, que era dama de honor da princesa D. Joana, a Beltraneja. Mas os adversários do Rei tinham muita força, tanto dentro como fora do país e esse objectivo nunca foi conseguido.

D. João II, o Príncipe Perfeito, faleceu no Alvor em 1495, três anos antes da chegada de Vasco da Gama à Índia. Morreu sem deixar herdeiros legítimos. Não é de excluir o envenenamento como causa da sua morte, dado o ódio que a nobreza lhe tinha. Antes de morrer, D. João II escolheu Manuel de Viseu, Duque de Beja, seu primo direito e cunhado, para sucessor. Na data da sua morte, Isabel de Castela terá afirmado: “Murió el Hombre!”. O Homem jaz no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha. Deixou como legado uma política de expansão ultramarina que foi continuada ao longo dos séculos seguintes e que tornou Portugal na primeira potência verdadeiramente mundial da história da humanidade.


19 – Isaac ben Judah, o Abarbanel

Isaac bem Judah ou Yitchak bem Yehuda Abravanel foi um estadista Judeu, um filósofo, comentador da Bíblia e financeiro. Descendente da família Abravanel, em várias obras é referido apenas pelo seu apelido, que por vezes surge como Abravanel, Abarbanel, Abrabanel. Muitos estudiosos da Tora e do Talmude referem-se a ele simplesmente como “O Abarbanel”. Nasceu em Lisboa, em 1437. Faleceu em Veneza, em 1508. Foi enterrado em Pádua.

A família Abravanel é uma das mais antigas e distintas famílias judaicas sefarditas, cuja ascendência directa tem origem no Rei David bíblico. Membros desta família viveram em Sevilha, onde viveu o seu representante mais velho, Judá Abravanel.

Tendo sido aluno de Joseph Hayim, rabino de Lisboa, Isaac Abravanel era versado em literatura rabínica e nos estudos do seu tempo, devotando os seus jovens anos ao estudo da filosofia judaica. Com apenas 20 anos de idade escreveu sobre a forma original dos elementos naturais, sobre questões religiosas e sobre profecias. As suas capacidades na política também lhe valeram a atenção de terceiros mesmo ainda na juventude. Entrou para o serviço do Rei Afonso V de Portugal como Tesoureiro do Reino e em breve ganhou a sua confiança.

Não obstante a sua alta posição e grande riqueza que herdou do seu pai, era notável o seu amor pelos pobres e oprimidos. Quando Arzila foi tomada pelos portugueses e os prisioneiros judeus foram vendidos como escravos, Abravanel contribuiu largamente com os fundos necessários para os libertar e organizou também colectas em seu favor por todo Portugal, tendo chegado a escrever ao seu rico e influente amigo Jehiel de Pisa, em apelo pelos presos.

Após a morte do Rei Afonso V, foi obrigado a deixar o seu cargo, tendo sido acusado por D. João II de conivência com o Duque de Bragança, que havia sido executado e com Diogo, Duque de Beja e Viseu, que tinha sido apunhalado pelo Rei por estarem a desenvolver uma conspiração contra este. Avisado a tempo, Abravanel salvou-se, fugindo para Castela em 1483. A sua grande fortuna foi confiscada por decreto real.

Em Toledo, sua nova residência, ocupou-se inicialmente com estudos bíblicos, e no decorrer dos meses seguintes, produziu uma grande quantidade de comentários aos livros de Josué, Juízes e Samuel. Pouco tempo depois,entrou ao serviço da Casa de Castela. Juntamente com o seu amigo, o influente Don Abraham Senior, de Segóvia, encarregou-se de administrar as receitas e fornecer abastecimentos ao exército real, com contratos que ele executou bem, para satisfação total de Isabel de Castela.

Durante as Guerras Mouriscas, Abravanel emprestou somas avultadas de dinheiro ao governo e quando foi decretada a expulsão dos Judeus de Espanha, tentou por todos os meios convencer o rei a revogar o édito, chegando a oferecer-lhe 30.000 ducados. Mas foi em vão. Com os seus companheiros de fé, Abravanel deixou a Espanha para ir viver para Nápoles, onde em breve entraria para os serviços do Rei. Por um período curto, viveu em paz, mas quando a cidade foi tomada pelos Franceses, foi roubado de todas as suas posses e seguiu o Rei Francês Ferdinand, em 1495, para Messina e, mais tarde, para Corfu.Em 1496 instalou-se em Monopoli, e finalmente em 1503 em Veneza, onde os seus serviços foram empregues na negociação de um tratado comercial entre Portugal e a República de Veneza. Ao longo desta época, foi contemporâneo de Nicolau Maquiavel e é de imaginar que tenham cruzado caminhos e talvez até discutido temas de política.

O mundo é pequeno…

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Maçonaria, Igreja Católica e Illuminati

Hoje encerramos a entrada sobre a Franco-Maçonaria neste nosso breviário. As histórias, como a vida, não são estanques, por isso, é provável que encontremos adiante, noutras entradas deste breviário, algumas referências a este tema e até o desenvolvimento de alguns dos momentos que neste artigo foram abordados ao de leve, como sejam as histórias de revoluções e movimentos de independência que registaram alguma influência maçónica.

Não nos debruçámos sobre o funcionamento da Maçonaria nos dias de hoje porque consideramos que esse é um trabalho para ser levado a cabo por jornalistas, o nosso papel não é o de fazer notícias mas sim o de contribuir para a formação dos nossos leitores, fazendo-lhes chegar alguns dados que, muito provavelmente, desconhece e que lhe são úteis para a compreensão do mundo em que vivemos e para a análise das relações políticas e sociais.

No que diz respeito à Maçonaria, consideramos que, com o artigo de hoje, a nossa missão está cumprida, tendo disponibilizado os dados suficientes para que o leitor atento entenda do que se trata, como funciona e quais os seus objectivos, esperamos ainda ter contribuído para uma melhor compreensão do tema por parte do público em geral e conseguir, com esta peça, o enquadramento de algumas outras que já surgiram e continuarão a surgir neste breviário.

Dito isto, sigamos em frente:


5.7 - Relações dos Estados e das Autoridades Religiosas com a Maçonaria


Curiosamente, o primeiro sobrerano a aderir e a proteger a Maçonaria foi o Imperador Católico Francisco I, que foi o fundador da última dinastia reinante da Áustria, enquanto as primeiras medidas contra a Maçonaria foram tomadas por governos Protestantes, na Holanda, em 1735. Desde então até tempos recentes, a Maçonaria foi perseguida e proibida, intermitentemente por toda a Europa. Durante o período de 1827 a 1834, foram tomadas medidas contra a Maçonaria em vários Estados Americanos. No que diz respeito à Europa pode-se afirmar que todos os regimes que não originaram em movimentos revolucionários, de uma forma ou de outra, tentaram proteger-se das sociedades secretas do tipo maçónico, quer limitando-as, quer proibindo-as.
A acção da Igreja tem-se baseado em pronunciamentos papais contra a Franco-Maçonaria, que têm ocorrido regularmente desde 1738, tendo todos os Papas, com excepção do último, que provavelmente ainda não teve tempo para isso, emitido o seu juízo quanto à maldade intrínseca deste movimento. Os mais profícuos neste capítulo foram Bento XIV, Pio IX e Leão XIII . Estes escritos pontifícios têm estado perfeitamente de acordo uns com os outros e apenas têm evoluído de acordo com os desenvolvimentos que foram sendo exigidos pelo crescimento da influência da Maçonaria e de outras sociedades secretas, tendo os mais recentes sempre reiterado os anteriores.
Clemente XII indica claramente as razões pelas quais as associações maçónicas devem ser condenadas do ponto de vista católico, nos aspectos morais, políticos e sociais. Estas razões são diversas. Em primeiro lugar, Clemente XII aponta o carácter peculiar, não-sectário e naturalista da Fraco-Maçonaria, através do qual, em teoria e na prática, esta mina a fé Cristã e Católica, primeiro nos seus membros e através deles, no resto da sociedade, gerando indiferenciação religiosa e desprezo pela ortodoxia e pela autoridade eclesiástica. Em segundo lugar, aponta o inescrutável secretismo e o disfarce camaleónico da Maçonaria e da sua obra, através dos quais, “homens deste tipo entram como ladrões numa casa e, como raposas, conseguem esquivar-se por entre as vinhas”, “pervertendo os simples, usurpando o seu bem estar espiritual e temporal”. Em terceiro lugar, este Papa, que foi o primeiro a pronunciar-se sobre a questão, aponta que os votos de secretismo e de fidelidade à Maçonaria e à ora Maçónica, são condenáveis, porque o objecto e o âmbito da Maçonaria são malvados e condenáveis e o candidato é, na maioria dos casos ignorante da importância e da extensão das obrigações que assume. Os segredos ritualísticos e doutrinais, que são o principal objecto dos votos, de acordo com Clemente XII, são ninharias ou mesmo inexistentes, afirmando este que mesmo os códigos de reconhecimento mútuo dos maçons, que representariam o único e essencial segredo da maçonaria, estão representados em muitos livros, então, defende este Papa, os verdadeiros segredos da Maçonaria só podem ser conspirações políticas ou anti-religiosas. Assim, em todos os aspectos, os votos maçónicos não são apenas sacrílegos como também representam uma ameaça à ordem pública. A finalizar, Clemente XII, afirma o perigo que tais sociedade representam para a segurança e tranquilidade do Estado e para a saúde espiritual das almas, e consequentemente, a sua incompatibilidade com os Direitos Civil e Canónico.
Os restantes éditos papais apresentam apenas alguns traços característicos. Bento XIV apelou à urgência dos príncipes católicos e autoridades civis auxiliarem a Igreja na sua luta contra a Maçonaria. Pio VII condenou a sociedade secreta da Carbonária, que segundo ele não era um derivado, era certamente uma imitação da Maçonaria. Leão XII deplora o facto de as autoridades civis não terem atendido aos anteriores decretos papais e de em consequência disso, terem nascido das antigas sociedades maçónicas, seitas ainda mais perigosas que as anteriores. Gregório XVI declara que as calamidades da sua era se deveram principalmente às conspirações das sociedades secretas, e, como Leão XII, critica o indiferencialismo religioso e as falsas ideias de tolerância propagadas pelas sociedades secretas. Pio IX caracteriza a Franco-Maçonaria como uma organização insidiosa, fraudulenta e perversa, insultuosa tanto para a religião como para a sociedade e condena novamente a sociedade maçónica e outras similares, que diferindo apenas na aparência, “abertamente conspiram contra a Igreja e as autoridades legais”. Depois, segundo Leão XIII, o propósito último da Maçonaria é “derrubar toda a ordem religiosa, política e social baseada nas instituições Cristãs e o estabelecimento de um novo estado de coisas de acordo com as suas próprias ideias e baseado, nos seus princípios e leis, em puro Naturalismo”. Papas mais recentes têm emitido decretos no mesmo sentido destes dos Sécs. XVIII e XIX.
Devido a estas razões variadas, os Católicos, desde 1738, incorrem em pena de excomunhão se participarem de ou promoverem de qualquer forma seitas maçónicas, pelo que os éditos papais contra a Franco-Maçonaria têm frequentemente levado a acusações falsas e erróneas ao longo dos três últimos séculos e provavelmente têm contribuído mais do que qualquer outra coisa para a cimentação da fama da Maçonaria como fomentadora e participante de conspirações.

5.8 – A Maçonaria e os Illuminati


Quando, em 1776, Adam Weishaupt formou os Illuminati da Baviera, planeou infiltrar a sua organização na Maçonaria e usar o secretismo das Lojas maçónicas para recrutar maçons para os Illuminati, convencendo-os de que era ele quem tinha a chave para os graus mais elevados da Maçonaria. O seu plano era criar uma organização secreta para controlar o mundo a partir dos bastidores para “benefício“ da humanidade, tornando as guerras obsoletas, os pobres ricos, eliminando fronteiras nacionais e raciais, retirando aos pais a responsabilidade de criar as suas próprias crianças e formando um governo comunista universal. O único senão era que, entretanto, teria que provocar algumas guerras, abolir a religião, e muitas pessoas teriam de morrer no processo. Para Weishaupt isto não eram muito mau porque, como costumava dizer: ”os fins justificam os meios”.

Weishaupt decidiu então que não contaria a ninguém a parte má até que subissem o suficiente para serem capazes de fazer tudo para manterem o seu poder e posição social. Recrutou os líderes sociais, os ricos e os prestigiados e poucos anos depois haviam centenas de Lojas Iluminadas na Europa e dezenas na América. No tempo da Guerra Revolucionária e da assinatura da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, houveram rumores acerca de os Illuminati estarem a trabalhar para destruir a República. George Washington escreveu acerca deles nos seus diários e descreveu possíveis ligações deste grupo ao Eastern Banking Establishment bem como o fomento de deserções nas fileiras revolucionárias através de acções de propaganda dos Illuminati.

Os Illuminati aproveitaram a sua oportunidade para chegar ao poder em 1789, em França, durante a Revolução Francesa, espalhando a revolta contra a religião e a monarquia. Controlando a imprensa e os vendedores de livros, conseguiram emitir toda a espécie de propaganda a incitar o povo à revolução. Quando tudo acabou e o povo pensou que tinha o poder para si, os Illuminati detinham secretamente as rédeas do poder na Assembleia Nacional Francesa. Foram necessárias décadas de trabalho de um grupo muito mais secreto e muito mais antigo para a situação se começar a inverter. Mas, essa é uma outra história…

quarta-feira, 2 de maio de 2007

A Guerra das Gálias

No primeiro século antes de Cristo, na Península Itálica, não havia rádio, televisão ou imprensa. A informação circulava verbalmente ou através de rolos de papiro que eram copiados por escribas, o que tornava a edição de qualquer obra literária um empreendimento extraordinariamente dispendioso e as poucas obras que eram copiadas eram cobiçadas e lidas por todos os que sabiam ler. No tumultuoso e complexo jogo que era a política Romana, haver uma obra literária a dizer bem de alguém era meio caminho andado para a fama e a glória.

Júlio César apercebeu-se disso e, em resultado escreveu os seus “Comentários sobre a Guerra das Gálias”, que foram lidos e relidos nos serões romanos e funcionaram como um tremendo trunfo publicitário à personalidade daquele que viria a ser considerado o primeiro cidadão da República Romana e esteve prestes a ser consagrado como o primeiro Rei de Roma. O objectivo de manipular os leitores Romanos levou este homem a escrever a primeira obra-prima da propaganda política da história Romana.

O texto, com o título de Comentarii de Bello Gallico, descreve as batalhas e intrigas que tiveram lugar durante os nove anos que Júlio César passou a combater os exércitos que se opunham à ocupação Romana da Gália. A Gália a que César se refere é por vezes toda a Gália, com excepção da Província Narbonensis, (a Provença), englobando toda a França, Bélgica e parte da Suíça, em outras ocasiões, refere-se ao território ocupado pelos Celtas, a quem os Romanos chamavam Gauleses, entre o Canal da Mancha e Lyon.

Esta obra permanece, até aos dias de hoje, como a mais importante fonte histórica sobre a campanha militar de conquista da Gália pelo exército Romano. Sendo frequentemente aplaudida pelo estilo polido e claro do seu Latim, este livro é ainda um dos primeiros exemplos da escrita na terceira pessoa, (quem ouvisse a leitura do livro, ouviria: César fez isto, César fez aquilo, César veio para cá, César foi para lá, etc…), o que demonstra a excepcional capacidade do autor para explorar ao máximo a ferramenta publicitária ao seu dispor. A maior parte das pessoa que viriam a ter contacto com o texto, efectivamente, seriam ouvintes e não leitores, o que tornava excepcionalmente importante escrever o livro como se o leitor estivesse a contar a história de Júlio César, em lugar de ser este a contar a sua própria história. Neste livro percebe-se uma clareza de sintaxe e uma beleza de estilo, que é ao mesmo tempo simples e elegante, essencial e não retórico, isento de adornos mas rico em detalhes.

Os Comentários sobre a Guerra das Gálias são ainda valiosos pelos inúmeros factos históricos e geográficos que apresentam, e que passam pela descrição dos costumes e religião dos Gauleses, uma comparação entre os povos Gauleses e os Germânicos e ainda notas curiosas como seja a indicação sobre a falta de interesse dos Germanos pela agricultura.

O primeiro livro trata exclusivamente da Guerra Helvética, em 58 a.C., nele, Júlio César descreve a Gália e a campanha contra os Helvéticos, um conglomerado de povos cujo número excedia os trezentos mil que decidiu migrar pela força das armas das regiões Alpinas que ocupavam, através do centro da Gália até ao Oeste para fugirem às pressões populacionais. Isto implicava que atravessariam a província Romana de Narbonensis ou áreas ocupadas por tribos aliadas de Roma. Quando Júlio César tornou claro que não permitiria isso, os Helvéticos formaram uma aliança de tribos para o combater. Os restantes seis livros versam sobre as campanhas contra os Venetos, os Aquitanos, povos Germânicos e Bretões, as invasões da Bretanha, a insurreição da Gália e, finalmente, a derrota de Vercingetorix na batalha de Alesia.

No final do segundo ano de guerra, a maior parte das tribos hostis haviam sido derrotadas e a maior parte da Gália estava sob controlo Romano, nesse ponto, qualquer ameaça à província ou a Roma era no mínimo dúbia. Foi feito notar que este livro também pode ter sido escrito em resposta aos opositores políticos de César, que questionavam a real necessidade dessa guerra, que foi uma das mais dispendiosas da história Romana. Muitas das explicações avançadas por César desafiam a credulidade dos leitores, por exemplo, a razão apontada para a invasão da Bretanha resumiu-se à descoberta de que os exércitos que os Romanos combateram no Noroeste da Gália eram apoiados por mercenários Bretões.

Em suma, uma história que merece ser incluída no nosso breviário…


17- A Guerra das Gálias

A Guerra das Gálias foi o nome que se deu à série de campanhas militares em que várias Legiões Romanas invadiram a Gália sob o comando de Júlio César e às sublevações de tribos Gaulesas que a estas se seguiram. Os Romanos teriam chegado a entrar na Bretanha e na Germânia mas estas incursões nunca foram invasões em grande escala. A Guerra das Gálias culminou com a decisiva batalha de Alesia, em 52 a.C., que resultou na derrota de Vercingetorix e na incorporação de toda a Gália na República Romana.

Apesar de César ter retratado esta invasão como uma acção defensiva e preventiva, a maior parte dos historiadores concorda que esta guerra foi travada principalmente para promover a ascensão política de Júlio César e para pagar as suas dívidas astronómicas. No entanto, não se pode descartar a importância militar da Gália para os Romanos, que haviam sido atacados várias vezes por tribos célticas indígenas das terras a Norte de Itália. A conquista da Gália ajudaria a cimentar a fronteira natural no Rio Reno.

Em 58 a.C., Júlio César terminou o seu consulado em Roma e estava incrivelmente endividado. No entanto, tendo sido membro do Primeiro Triunvirato, junto com Marco Licínio Crasso e Pompeu, assegurou para si o governo de duas províncias: a Gália Cisalpina e o Ilirico. Quando o Governador da Gália Transalpina morreu inesperadamente, esta província também foi entregue a César para governar, os postos de Governador de César foram estendidos para cinco anos, mais três que os dois que eram de uso na República Romana.

Inicialmente, César tinha sob seu comando quatro legiões veteranas: A VII Legião, a VIII Legião, a IX Legião Hispana e a X Legião. César conhecia pessoalmente todas estas legiões pois havia estado em campanha com elas contra os Lusitanos em 61 a.C., enquanto foi Governador da Hispânia Ulterior. César também tinha a autoridade para formar novas legiões e unidades auxiliares, conforme considerasse necessário.

O seu objectivo era claramente o de conquistar e saquear algumas regiões, mas é pouco provável que a Gália fosse o seu alvo inicial. Pensa-se que estivesse a planear uma campanha nos Balcãs contra o Reino da Dácia.

As tribos Célticas, por outro lado eram bastante civilizadas, ricas e totalmente divididas entre si. A maior parte delas tinha negócios com mercadores Romanos e estava a ser influenciada pela cultura Romana. Algumas até havia mudado os seus sistemas políticos de Monarquias tribais para Repúblicas inspiradas na Romana. Os Romanos respeitavam e temiam as tribos Gaulesas e Germânicas. Apenas cinquenta anos antes, em 109 a.C., a Itália tinha sido invadida por eles e salva apenas após várias batalhas sangrentas e muito custosas em que os Romanos foram comandados por Gaio Mário. Muito recentemente, os Suevos haviam migrado para a Gália sob o comando do seu líder Ariovisto e parecia que as tribos estavam novamente em movimento.

Em 61 a.C., os Helvéticos começaram a planear uma migração em massa, instigados por Orgetorix. Os Helvéticos estava insatisfeitos com a extensão do seu território, comprimidos entre os Celtas Sequani e os Romanos da Gália Narbonense. Como diplomata, Orgetorix negociou com os Sequani e os Eduínos. Orgetorix tmbém fez contactos pessoais e uma aliança com Casticus e Dumnorix, os líderes dessas tribos, chegando a casar a sua filha com o último. César acusou os três de terem ambições Reais. Ao longo de três anos, os Helvéticos planearam e prepararam-se, tendo enviado emissários a diversas tribos Gaulesas à procura de salvo-conduto e alianças.

Em 58 a.C., as ambições de Orgetorix foram reveladas à sua tribo e ele foi levado a julgamento, ao qual escapou. No entanto, este evento não dissuadiu os Helvéticos dos seus planos. Eram uma tribo endurecida por constantes guerras e também eram muito numerosos. Quando partiram, queimaram todas as cidades e aldeias e juntaram-se-lhes várias tribos vizinhas: os Rauracios, os Tulingios, os Latovícios e os Boios. Tinham duas rotas disponíveis, uma era o difícil e perigos Pás de l’Ecluse, entre as montanhas de Jura e o Reno, o segundo, que era muito mais fácil, levá-los-ia em direcção à cidade de Geneva, onde o Lago Geneva se une ao Reno e onde uma ponte facilitaria a passagem do Rio. Essas terras pertenciam aos Alobrógios, um tribo que havia sido submetida por Roma e, como tal, faziam parte da província Romana da Gália Transalpina.

Entretanto, César estava em Roma e apenas uma Legião se encontrava na Província ameaçada. Mal teve notícia dos acontecimentos, César apressou-se a chegar a Geneva e, para além de ordenar o levantamento de várias unidades auxiliares, mandou destruir a ponte. Os Helvéticos enviaram uma embaixada liderada por Nammeius e Veroclécio, para negociar uma passagem pacífica, prometendo não fazer qualquer mal. César, ganhando tempo valioso, empatou as negociações até que as suas tropas conseguissem fortificar as suas posições ao longo do Rio.

Quando a embaixada regressou, César recusou oficialmente e avisou-os de que qualquer passagem forçada teria a sua oposição. Várias tentativas foram rapidamente repelidas. Os Helvéticos voltaram para trás e começaram negociações com os Sequani para uma passagem pacífica. Deixando a Legião sob o comando do seu Lugar-Tenente, Tito Labénio, César seguiu para a Gália Cisalpina. Quando Chegou, tomou o comando das três legiões que estavam em Aquileia e recrutou duas novas legiões, a XI e a XII. À cabeça destas cinco legiões, atravessou os Alpes pelo caminho mais curto, cruzando o território de várias tribos hostis e combatendo diversas escaramuças pelo caminho.

Entretanto, os Helvéticos já tinham atravessado os territórios dos Sequani e estavam ocupados a pilhar os territórios dos Eduínos, dos Ambarrinos e dos Alobrógios. Estas tribos não tinham capacidade para se lhes opor e, como aliados de Roma, pediram a César a sua ajuda. César acedeu aos seus pedidos e surpreendeu os Helvéticos enquanto estes atravessavam o rio Arar. Três quartos dos Helvéticos já tinham passado, mas um quarto, o clã Helvético dos Tigúrios ainda estava na margem oriental. Três Legiões comandadas por César, surpreenderam e derrotaram os Tigúrios na Batalha de Arar, infligindo-lhes grandes perdas. Os Tigúrios sobrantes fugiram para os bosques circundantes.

Finda a batalha, os Romanos construíram uma ponte sobre o Arar, (actual Saône), para perseguir os restantes Helvécios. Os Helvéticos enviaram uma embaixada liderada por Divico, mas as negociações falharam. Os Romanos perseguiram os Helvéticos durante umaquinzena até ficarem com problemas de abastecimentos. Aparentemente, Dumnorix estava a fazer tudo ao seu alcance para atrasar as entregas de mantimentos. Posto isto, os Romanos pararam a perseguição e dirigiram-se à cidade Eduína de Bribacte. A situação havia mudado e agora eram os Helvéticos a perseguir os Romanos, assediando a sua retaguarda. César escolheu uma elevação próxima para a batalha e as legiões Romanas ficaram frente a frente com os seus inimigos.

Seguiu-se a Batalha de Bribacte, na qual os Romanos esmagaram os seus opositores e os Helvéticos derrotados ofereceram a sua rendição, que César aceitou. No entanto, seis mil homens do Clã dos Verbigénios fugiram para evitar a captura. Por ordem de César, outras tribos Gaulesas capturaram e entregaram esses homens, que foram executados. Como eram úteis como almofada entre os Romanos e outros invasores mais a Norte, os sobreviventes foram devolvidos às suas terras, para as reconstruir e foram organizados os mantimentos necessários para os alimentar. Foi encontrado um censo, escrito em grego, que indica que, de trezentos e sessenta e oito mil Helvéticos, apenas cento e dez mil sobreviveram e voltaram para casa.

A seguir a esta campanha, vários aristocratas Gauleses de quase todas as tribos chegaram para felicitar César por esta sua vitória. Convocaram uma Assembleia Pan-Gálica para discutir vários assuntos e convidaram César a estar presente.

Nessa reunião, os deputados queixaram-se de, devido à guerra entre os Eduínos e os Arvernios, numerosos mercenários Germânicos terem sido contratados pelos últimos. Estes mercenários, que eram liderados por Ariovisto, tinham trído os seus empregadores e haviam levado os filhos de vários aristocratas como reféns. Tinham ganho várias batalhas e recebido importantes reforços e a situação estava a ficar fora de controlo. César interveio no conflito e derrotou claramente Ariovisto na Batalha de Vosges, empurrando as restantes forças Germânicas para lá do Reno.

Em 57 a.C., César voltou a intervir num conflito entre Gauleses, marchando contra os Belgas, que habitavam numa área mais ou menos idêntica à actual Bélgica e haviam atacado recentemente uma tribo aliada dos Romanos. O seu exército sofreu uma emboscada enquanto montava acampamento próximo do Rio Sambre e esteve quase a ser derrotado, mas foi salvo pela sua grande disciplina e pela intervenção pessoal de César na luta. Os Belgas sofreram pesadas baixas e eventualmente renderam-se quando foram confrontados com a destruição das suas cidades.

No ano seguinte, César voltou a sua atenção para as tribos da frente atlântica onde os Venécios, uma tribo da Armórica (a Bretanha actual), haviam congregado uma aliança de tribos anti-Romanas. Os Venécios eram uma tribo de marinheiros e tinham construído uma frota no Golfo de Morbihan, o que obrigou os Romanos a construir Galés e levar a cabo uma invulgar campanha marítima e terrestre. Mais uma vez, César derrotou os Gauleses, destruindo as suas tribos.

Em 55 a.C., César levou as suas tropas para lá do Reno numa expedição punitiva contra os Germanos, apesar de os Suevos, a tribo contra a qual a expedição tinha sido montada, nunca terem entrado em combate. Depois, atravessou o Canal da Mancha com duas legiões com o fim de levar a cabo uma expedição semelhante contra os Bretões. A aventura britânica quase acabou em desastre quando o mau tempo destruiu grande parte da frota e os seus soldados foram confrontados com a visão pouco familiar de uma massa de carroças. César conseguiu, no entanto, uma promessa de reféns, dos quais foram entregues apenas dois. Retirou e voltou no ano seguinte com uma força muito maior, com a qual acabou por derrotar os poderosos Catuvelanos e os forçou a pagar tributo a Roma. Estas expedições tiveram um efeito muito pouco duradouro mas foram grandes vitórias propagandísticas para César, mantendo-o no centro da atenção pública em Roma.

As campanhas de 56 e 55 a.C. têm causado controvérsia ao longo dos séculos. Já eram controversas no tempo do próprio César entre os seus contemporâneos e, especialmente, entre os seus opositores políticos que as denegriram como um dispendioso exercício de engrandecimento pessoal. Em tempos modernos, os comentadores dividem-se entre os críticos da agenda imperialista de César e os defensores dos benefícios que a expansão do poder Romano acabaram por trazer à Gália.

O descontentamento entre os Gauleses subjugados provocou uma grande rebelião no Inverno de 54 a.C., quando os Eburónios do Nordeste da Gália se sublevaram sob a liderança do seu líder Ambiorix. Quinze coortes Romanas foram dizimadas perto de Atuatuca e uma Legião comandada por Quinto Túlio Cícero sobreviveu por pouco, por ter sido reforçada por César mesmo à última da hora. 53 a.C. foi passado em expedições punitivas contra os Eburónios e os seus aliados, de quem se diz terem sido todos exterminados pelos Romanos.

Esta sublevação, no entanto, foi apenas o prelúdio de uma insurreição muito maior, liderada por Vercigetórix, chefe dos Arvérnios, uma tribo da Gália Central, que conseguiu, com sucesso, unir todos os gauleses contra os Romanos. Percebendo que os Romanos tinham a vantagem no campo de batalha, porque os Gauleses haviam passado os vinte anos precedentes lutando entre si e contra inimigos exteriores, Vercingetórix recusou-se a combater directamente os Romanos, e, em vez disso, optou por uma campanha de terra queimada para os privar de mantimentos.

César, rapidamente regressou da Itália para se encarregar da campanha, perseguindo os Gauleses e capturando a cidade de Avaricum mas sofrendo uma pesada derrota em Gergóvia. Acabou por encurralar e derrotar Vercingetórix em Alesia. Este evento marcou o fim da Guerra das Gálias, apesar de ainda terem decorrido algumas operações de limpeza durante o ano de 51 a.C. e de algumas pequenas rebeliões terem ocorrido subsequentemente, mas o controlo da Gália por parte dos Romanos não voltou a ser seriamente ameaçado até ao Séc. II d.C..
O sucesso Romano na Guerra das Gálias foi devido a uma combinação de uma política inteligente, logística eficiente e maior capacidade militar que os opositores Gauleses. César seguiu uma política de “dividir para conquistar” para poder seleccionar os seus inimigos, aliando-se a tribos individuais nas suas disputas com os seus rivais locais. César recolheu sistematicamente informações sobre as tribos Gaulesas por forma a poder identificar as suas características, fraquezas e divisões, para poder eliminá-las por ordem.

Muitos dos soldados de César eram, eles próprios, Gauleses, portanto o conflito não era uma simples guerra entre Romanos e Gauleses. O exército de César era uma entidade extremamente cosmopolita. O seu núcleo duro era constituído por seis, (mais tarde dez), legiões de infantaria pesada, apoiadas por mais duas nas campanhas posteriores. César contava com aliados estrangeiros para a sua cavalaria e infantaria ligeira, tendo recrutado Numídios, Cretenses, Hispanos, Lusitanos, Germânicos e Gauleses, tendo conseguido um uso muito eficiente destas forças, explorando o orgulho e a vaidade das unidades individuais para os conduzir a maiores esforços.

Os opositores Gauleses de César eram consideravelmente menos capazes que os Romanos, em termos militares. Conseguiam reunir grandes exércitos mas faltava-lhes disciplina e flexibilidade. Os guerreiros Gauleses eram lutadores ferozes e eram, por isso, enormemente admirados pelos Romanos. A sua táctica consistia unicamente em carregar sobre o adversário em massa e a sua falta de coesão tornava-os incapazes de qualquer tipo de sofisticação na batalha. Também lhes faltava apoio logístico e não podiam estar em campo tanto tempo como os Romanos.

Por outro lado, também é possível que a derrota Gaulesa tenha sido causada por gerações de guerreio contra os invasores Germânicos que só foram repelidos com grande custo humano.

Já agora, vale a pena pensar nisso…

Números, números, números... Chegámos aos 3000

Escrevo hoje só para registar que chegámos às 3000 páginas vistas por 1740 visitantes individuais, cuja preferência foi para o texto sobre a "Breve História da Franco-Maçonaria" que teve 382 leitores.

Um grande obrigado a todos pela visita.

terça-feira, 1 de maio de 2007

O Mercador de Veneza

Sempre considerei que uma das maiores vantagens de escrever é que podemos falar sobre o tema que nos apetece sem ninguém nos interromper, o que, só por si, constitui um poderoso estimulante para a escrita.

Hoje, apetece-me falar sobre uma das minhas peças de teatro preferidas: O Mercador de Veneza, de William Shakespeare. Como não podia deixar de ser, o tema, à semelhança da maior parte dos escritos shakespearianos é político, ou antes, envolve no enredo a descrição de temas que são universais e de todos os tempos, e que nos levam a reflectir profundamente sobre o significado das acções dos personagens e nos colocam em debate interno sobre a nossa atitude perante a vida e sobre a nossa posição sobre este ou aquele tema.

Para os que não gostam de teatro ou não têm paciência para ler o texto da peça, recomendo o excepcional filme de Michael Radford, de 2004, que conta com a participação de Jeremy Irons, Al Pacino, Joseph Fiennes, Lynn Collins e Zuleikha Robinson. Garanto que no final não se sentirão confortáveis enquanto não resolverem dentro de vós os vários dilemas que a história encerra e se calharem a ver o filme acompanhados, encontrarão ali pretexto para várias horas de conversa.

No dia do disparatado cartaz do avião que convidava os imigrantes a partir para outras paragens foi d’ O Mercador de Veneza que me lembrei, não sei porque associações neuronais e dei por mim a reler o pequeno opúsculo da Penguin Books que tenho lá por casa. The Most Excelent Tale of The Merchant of Venice, by William Shakespeare, de que hoje vos trago a sinopse e uma breve análise.


16- O Mercador de Veneza, de William Shakespeare

Escrita possivelmente entre 1596 e 1598, O Mercador de Veneza é uma das peças mais famosas de William Shakespeare. Sendo por vezes classificada como uma comédia, (comédia, naqueles tempos, não tinha exactamente o mesmo significado que tem hoje), partilha alguns aspectos com as restantes comédias românticas de Shakespeare e é frequentemente lembrada pelas suas cenas dramáticas, principalmente a do julgamento e a do solilóquio do 3º acto. Ficou conhecida pela forma como retrata o Judeu Shylock e por ter, com isso, atraído acusações de anti-semitismo.

O personagem que dá o título à peça é o mercador António e não o vilão que acabou por ficar mais famoso, o agiota Shylock, que é uma espécie de anti-herói da história. Apesar de Shylock ser um personagem atormentado, ele também é um atormentador, portanto, cabe à audiência decidir se o vê com desdém ou simpatia. De acordo com isto, esta peça é por vezes classificada como uma das peças problemáticas de Shakespeare.

A peça parece ter sido influenciada ou talvez escrita em reacção à comédia negra imensamente popular de Christopher Marlowe, O Judeu de Malta, que foi escrita por volta da 1589 e revista em 1594. O personagem Shylock parece baseado no Barrabás de Marlowe, cuja filha também se apaixona por um Cristão e é convertida. No entanto, a principal fonte é “Giannetto de Veneza e a Senhora de Belmonte”, do Il Perocone de Ser Giovanni, ao qual Shakespeare adiciona a escolha de três baús e o motivo da libra de carne, que é comum no folclore britânico. Uma peça perdida chamada “O Judeu”, parece também ter sido uma influência. No tempo da escrita da peça, o Médico da Rainha Isabel, Rodrigo Lopez foi acusado de conspirar no envenenamento da rainha, tendo sido preso em Janeiro de 1594, condenado em Fevereiro e executado em Junho. Alguns historiadores e críticos literários afirmam que o julgamento de Lopez terá de alguma forma influenciado Shakespeare. Entre outras fontes que podem ter sido usadas encontra-se o Decameron de Boccacio.


Sinopse

O jovem veneziano Bassanio pretendia viajar até à ilha de Belmonte para cortejar a bela e rica herdeira Portia. Pede ao seu amigo António, um mercador, os três mil ducados necessários para sustentar os seus gastos de viagem como pretendente durante três meses. Como todos os bens de António se encontram embarcados, António dirige-se ao agiota Judeu Shylock para lhe pedir um empréstimo.

Shylock, cheio de raiva por António, na semana anterior, o ter insultado e lhe ter cuspido por ser Judeu, propõe uma condição para o empréstimo. Se António não conseguir pagar o empréstimo até à data combinada, Shylock será livre de tirar uma libra da carne de António de qualquer parte do corpo à sua escolha. Apesar de Bassanio não querer que António aceite uma condição tão arriscada, António, surpreendido pelo que ele vê como um acto generoso do agiota, aceita e assina o contrato. Com o dinheiro na mão, Bassanio parte para Belmonte com Gratiano, outro amigo.

Em Belmonte, Portia não tem falta de pretendentes. O seu pai, no entanto, deixou um testamento em que estipulava que cada um dos pretendentes deveria escolher correctamente um de três baús, um de ouro, outro de prata e outro de chumbo, antes de poder ter a mão de Portia em casamento. Para além disso, cada pretendente devia prometer que viveria o resto da sua vida solteiro no caso de escolher de forma errada. O pretendente que conseguisse ver para além da aparência exterior do baú, encontraria o retrato de Portia no interior do que escolhesse e ganharia a sua mão.

Depois de dois dos pretendentes, os príncipes de Marrocos e Aragão, escolherem de forma errada, Bassanio faz a escolha correcta, a do baú de chumbo. Os outros dois contém versos que gozam com os que fizeram a escolha errada, incluindo a famosa frase “nem tudo o que brilha é ouro”.

Em Veneza, sabe-se que todos os barcos que continham os bens de António se perderam no mar, situação que o deixa sem possibilidades de satisfazer o acordo. Depois da sua filha Jessica fugir de casa com o jovem Lorenzo e parte substancial da sua riqueza para se converter ao Cristianismo, Shylock decide vingar-se. Com a Letra do empréstimo na mão, Shylock manda prender António e levá-lo a tribunal.

Entretanto, em Belmonte, Portia e Bassanio casam-se ao mesmo tempo que o amigo deste, Gratiano, se casa com a criada de Portia, Nerissa. Bassanio recebe uma carta contando-lhe a situação de António. Chocados, os amigos partem para Veneza imediatamente, com dinheiro de Portia para salvar a vida a António. Sem Bassanio e Gratiano saberem, Portia e Nerissa saem de Belmonte para procurar o conselho do advogado Bellario, primo de Portia, de Pádua.

Na corte do Duque de Veneza, tem lugar o julgamento. Shylock recusa a oferta de Bassanio apesar deste aumentar o pagamento para 6000 ducados, o dobro do dinheiro emprestado. Shylock exige a libra de carne de António. O Duque, desejando salvar António mas temendo criar o perigoso precedente de anular um contrato, passa o caso a Baltasar, um jovem Doutor de Leis, que, na realidade, é Portia disfarçada, com o seu escrivão, que é Nerissa disfarçada. Portia pede a Shylock que mostre misericórdia, mas este recusa. Então o tribunal permite a Shylock a extracção da libra de carne.

No preciso instante em que Shylock se prepara para cortar António com a sua faca, Portia aponta uma falha no contrato. A Letra apenas permite a Shylock tirar a carne, e não o sangue, de António. Se Shylock derramasse uma única gota de sangue de António ao cortar a sua carne, de acordo com as leis Venezianas, as suas terras e bens seriam confiscados.

Derrotado, Shylock aceita o pagamento monetário do empréstimo, mas este é-lhe negado. Portia afirma que nada lhe deve ser dado e que, pela sua tentativa de tirar a vida a um cidadão, as propriedades de Shylock devem ser confiscadas, metade para o governo e a outra metade para António, e a sua vida ficará à mercê da decisão do Duque. O Duque permite-lhe sair dali com vida antes que Shylock possa rogar por ela. António fica com o usufruto de metade bens de Shylock até à sua morte, altura em que deverá entregá-los a Jessica e Lorenzo. A pedido de António, o Duque anula a confiscação da outra metade na condição de Shylock se converter ao Cristianismo e deixar o resto da sua propriedade a Lorenzo e Jessica.

Bassanio não reconhece a sua mulher disfarçada. Oferece-se para lhe dar um presente. Primeiro ela declina, mas depois de ele insistir, ela pede-lhe o seu anel e as luvas. Entrega-lhe as luvas sem hesitação, mas só lhe dá o anel depois de muita persuasão por parte de António, pois tinha prometido à sua mulher nunca o perder, vender ou oferecê-lo.

No final, em Belmonte, Portia e Nerissa zangam-se com os maridos antes de lhes revelarem que eram elas o advogado e o escrivão. Depois de todas as personagens fazerem as pazes, tudo acaba bem, excepto para Shylock, e António descobre que três dos seus navios não afundaram e regressaram a salvo.

Discussão

Esta peça é potencialmente perturbadora para as audiências modernas devido aos seus temas centrais, que podem facilmente parece anti-semitas. Os críticos ainda discutem se a peça é em si anti-semita ou se é simplesmente uma peça sobre o anti-semitismo, ou se o cenário estrangeiro e a etnia dos protagonistas é um truque literário para acomodar verdades desconfortáveis.

A sociedade inglesa na era Isabelina tem sido frequentemente descrita como anti-semita. Os judeus ingleses foram expulsos na Idade Média e só puderam regressar no consulado de Oliver Cromwell. Os judeus eram frequentemente caricaturados no teatro Isabelino com narizes aduncos e perucas vermelhas e eram frequentemente caracterizados como agiotas usurários. O exemplo mais conhecido disto foi a peça extremamente popular, de Christopher Marlowe, “O Judeu de Malta”, cujo protagonista é um judeu comicamente malvado chamado Barrabás. Os judeus eram caracterizados no palco como maus, manhosos e gananciosos.

Na Veneza do Século XVI, os Judeus eram obrigados a usar um chapéu vermelho sempre que estivessem em público para que pudessem ser facilmente identificados. Se não cumprissem esta regra, poderiam ser condenados à morte. Os judeus também tinham que viver num gueto protegido por cristãos, supostamente para sua própria segurança. Era suposto pagarem aos guardas.

Muitos leitores vêem a peça de Shakespeare como uma continuação desta tradição anti-semítica. Uma interpretação possível da estrutura da peça seria que Shakespeare quereria contrastar a misericórdia dos principais personagens Cristãos com a ira vingativa do Judeu, a quem falta a graça religiosa para compreender a misericórdia. Simultaneamente também é possível entender a conversão forçada de Shylock ao Cristianismo como um final feliz para o personagem, pois redime o Judeu tanto da sua descrença como do pecado específico de ter querido matar António. Esta leitura da peça caberia certamente na moda anti-semita da Inglaterra Isabelina, mas, não nos esqueçamos que existiam censores.

A maior parte dos leitores e espectadores de teatro modernos vêem esta peça como um apelo à tolerância porque Shylock é um personagem que apela à compaixão. O julgamento de Shylock no final da peça é uma palhaçada de justiça, com Portia a agir como juiz, quando, na realidade, não tinha qualquer direito de o fazer. Assim, Shakespeare não está a pôr em causa as intenções de Shylock, mas o facto de as mesmas pessoas que acusam Shylock de ser desonesto recorrerem a truques e à desonestidade por forma a vencerem. Nesta peça aparece um dos mais eloquentes discursos jamais escritos para o teatro, e sai da boca do suposto vilão na 1ª cena do 3º Acto:

“Não tem um Judeu olhos? Não tem um judeu mãos, órgãos,
dimensões, sentidos, afectos, paixões; (Não é) alimentado com a
mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito
às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios,
aquecido e arrefecido pelos mesmos Invernos e Verões
que um Cristão? Se nos picam, não sangramos?
Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam,
não morremos? E se nos fazem mal, não nos vingamos?
Se somos como vós no resto, assemelhamo-nos a vós nisso.
Se um Judeu faz mal a um Cristão qual é o seu castigo?
Vingança. Se um Cristão faz mal a um Judeu qual deveria ser
o seu castigo pelo exemplo Cristão? Pois, Vingança.
A vilania que vocês me ensinam, eu executarei,
e vai ser duro mas eu hei-de superar a instrução.”

Lendo atentamente, apesar de a peça ser aparentemente ligeira e divertida, as vidas dos personagens Cristãos estão em colapso devido ao seu comportamento imoral e desrespeito pelos seus deveres para com a religião e a lei, ao mesmo tempo, Shylock não engana, não mente, não mata nem rouba, aparentemente nem age com qualquer maldade. A promessa da libra de carne foi um acto de espontânea vontade de António. É certo que dificilmente se pode argumentar pela moralidade da imposição desta cláusula por parte de Shylock, pois ele sabe que a efectivação desta vai matar António, mas de acordo com o comportamento anterior deste, o seu desejo de vingança não só é justificado mas, num certo sentido acaba por ser moral.

Identifica-se, por isso, não um carácter anti-semita na história, mas um ataque às hipocrisias prevalecentes na época, que efectivamente acaba por ser colocado de forma extremamente inteligente dado o contexto da censura na época. Acaba por ser difícil perceber se a leitura simpática de Shylock é devida à mudança de sensibilidade dos leitores ou se Shakespeare, que se deleitava a criar personagens extraordinariamente complexos e multi-facetados procurou deliberadamente esta leitura. Note-se que o penoso estatuto de Shylock na sociedade veneziana é enfatizado na história e que o seu discurso, “Não tem um Judeu olhos?”, praticamente o redime, transformando-o numa figura trágica. Mesmo que Shakespeare não tenha pretendido que a peça tivesse esta leitura, certamente permitiu que ela fosse feita.

Aparece também neste Mercador de Veneza um tema lateral que não é menos moderno, relacionado com a sexualidade dos personagens António e Bassanio, que está enquadrado na matriz poética e teatral Shakespeariana que frequentemente descreve fortes laços de homosocialidade entre homens. A homossexualidade implícita na relação entre António e Bassanio é o segundo tema que grava a matriz da história. A história desta peça é uma história de amor e vingança, é a história do amor de António por Bassanio e do desejo de vingança de Shylock pelas humilhações sofridas às mãos de António. É uma história de extremos.

António é um homem só, cuja vida emocional se encontra concentrada num personagem do mesmo sexo, aparentemente a viragem fatal na sua vida dá-se devido ao seu desespero, não só pela perda de Bassanio mas também porque Bassanio não pode retribuir os sentimentos que ele tem. O comportamento de António indicia idolatria por Bassanio, ao ponto de trocar o seu direito à vida pelo bem-estar da pessoa amada, arriscando tudo pelo outro. Quem também arrisca tudo, apesar de não se dar conta disso, é Shylock, quando, motivado pelo seu desejo de vingança coloca a cláusula fatal no contrato. Ambos parecem personificar as palavras contidas no baú de chumbo de Portia: “Aquele que me escolher, tem que me dar e arriscar tudo o que tem”.

O terceiro tema, muito menos importante na construção do enredo é o tema da fidelidade. O casamento de Portia e Bassanio é feito na condição de ele nunca tirar a aliança. A aliança é o símbolo da fidelidade marital, que era uma obsessão na época Isabelina, uma audiência desse tempo poderia ter visto a importância da entrega do anel ao advogado, (Portia disfarçada), e tê-lo visto como um símbolo do potencial de Bassanio para a infidelidade.

Em suma, “O Mercador de Veneza” é um texto actual escrito há quatrocentos anos, se não leu, não viu no teatro ou no cinema, vá a correr que é imperdível.