segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Os primeiros 1000 cliques!

Ena pá!

Tivémos 1000 cliques em pouco mais de um mês. É obra para um blog que só trata de assuntos chatos e que tem textos grandes que se fartam.

Agradecemos a todos os que nos têm visitado e, naturalmente, agradecemos que comentem e partilhem a vossa opinião sobre os temas expostos. Não é vergonha nenhuma comentar e eu garanto que a moderação dos comentários só serve para evitar as parvoíces do costume.

Também agradeço a todos os que, ao invés de comentarem o blog, me têm enviado mails a incentivar a continuação do trabalho e a dar toda a espécie de contributos e sugestões que me têm permitido melhorar a satisfação dos leitores.

Agradeço em particular a uma certa senhora da Nova Zelândia que me fez preocupar com a qualidade da ortografia e da pontuação, o que é difícil, por vezes, ao escrever directamente no teclado e à velocidade que se percebe. Se não temos um português melhor é mais por falta de tempo para as revisões que por outra razão, mas prometo que o livro que daqui irá surgir virá muito mais refinado na qualidade linguística.

1000 já cá cantam, vamos ver quanto tempo demoramos a chegar aos 10000.

Um abraço a todos,

Pedro Estadão

A peça do escocês

"So foul and fair a day I have not seen" (Primeira fala de Macbeth na peça de Shakespeare)

Os actores e outros trabalhadores do teatro, geralmente consideram má sorte mencionar Macbeth pelo nome dentro do teatro, a superstição leva-os a referirem-se a esta peça como “o escocês”, ou “o rei escocês”.

Diz-se que esta superstição tem origem na utilização por Shakespeare de textos de feitiços de bruxas verdadeiras na escrita desta peça, diz-se que as bruxas se zangaram e amaldiçoaram a peça. Assim, diz-se que mencionar o nome do escocês dentro do teatro condena a produção ao fracasso e provavelmente vai provocar aos membros do elenco, danos físicos ou pior. Esta mitologia foi-se cimentando com o tempo através de inumeráveis histórias de acidentes, infortúnios e até mortes que ocorreram misteriosamente durante representações de “Macbeth”.

Macbeth é uma das mais famosas peças de William Shakespeare e também é a sua tragédia mais curta. Tendo sido baseada no relato histórico da vida do Rei Macbeth da Escócia, esta peça é vista como um conto arquetípico dos perigos da luxúria do poder e da traição dos amigos. Macbeth é uma história de poder, traição e infortúnio, merece por isso a nossa atenção neste breviário.

14- Macbeth, de William Shakespeare

A maior parte dos historiadores data a escrita de Macbeth entre 1603 e 1606, o primeiro registo de uma apresentação pública data de Abril de 1611, no teatro Globe, de Londres. O texto foi revisto posteriormente por Thomas Middleton, que lhe introduziu passagens da sua própria peça “A Bruxa”, das quais se destaca uma cena adicional, envolvendo as bruxas e Hecate, porque esta cena demonstrou ser extraordinariamente popular junto do público.

A peça abre com trovões e relâmpagos, com as três bruxas a decidir que o seu próximo encontro será com um tal Macbeth. Na cena seguinte, um soldado ferido conta ao Rei Duncan da Escócia que os seus Generais Macbeth e Banquo acabavam de derrotar uma invasão das forças aliadas da Irlanda e da Noruega, lideradas pelo rebelde Macdonwald.

Quando Macbeth e Banquo entram numa clareira, as três bruxas recebem-nos com profecias. A primeira saúda Macbeth como Senhor de Cawdor, a segunda, saúda-o como Senhor de Glamis, a terceira proclama que ele “será Rei daqui em diante”. As bruxas também informam Banquo de que ele será progenitor de uma linhagem real. Enquanto os dois homens se interrogam sobre estas profecias, as bruxas desaparecem. Outro nobre, Ross, um mensageiro do Rei, chega e informa Macbeth do seu novo título, Senhor de Cawdor. Essa profecia é então cumprida, imediatamente. Em sequência, Macbeth começa a alimentar a ambição de se tornar Rei.

Macbeth escreve então à sua mulher a contar-lhe as profecias das bruxas. Quando Duncan decide ficar no castelo de Macbeth em Inverness, Lady Macbeth congemina um plano para o assassinar e assegurar o trono para o seu marido. Enquanto Macbeth levanta questões acerca do regicídio, a sua esposa acaba por conseguir persuadi-lo.

Durante a noite, Macbeth mata Duncan e a sua esposa arranja forma de tramar os criados adormecidos do Rei, colocando adagas ensanguentadas nos seus cintos. Na manhã seguinte, Lennox, um nobre escocês e Macduff, o Senhor de Fife, chegam ao castelo. Abrem-se os portões e Macbeth condu-los ao quarto do Rei, onde Macduff descobre o cadáver de Duncan. Num fingido ataque de fúria. Macbeth mata os criados do Rei antes que eles se possam reclamar inocentes. Macduff suspeita imediatamente de Macbeth. Os filhos de Duncan, temendo pelas suas vidas fogem, Malcolm para Inglaterra e o seu irmão Donalbain para a Irlanda. A fuga dos herdeiros legítimos torna-os imediatamente suspeitos e Macbeth assume o trono como novo Rei da Escócia, pelo seu parentesco com o falecido.

Apesar do seu sucesso, Macbeth continua desconfortável com a profecia de que Banquo seria progenitor de reis. Macbeth convida Banquo para um banquete real e descobre que Banquo e o seu filho Fleance viajariam juntos nessa noite, e contrata três homens para os matar. Apesar de terem conseguido matar Banquo, Fleance consegue fugir. No banquete o fantasma de Banquo entra e senta-se no lugar de Macbeth.

Perturbado com este acontecimento, Macbeth procura as bruxas. Elas conjuram três espíritos que lhe dizem para ter cuidado com Macduff, mas também que ninguém nascido de mulher fará mal a Macbeth e que ele nunca será vencido até que a madeira da grande floresta de Birnam e a alta montanha de Dusinane se voltem contra ele. Como Macduff está no exílio, Macbeth massacra toda a gente no castelo de Macduff, incluindo a sua mulher e os seus filhos.

Eventualmente, Lady Macbeth enche-se de remorsos pelos crimes que ela e o marido cometeram. Numa cena famosa, vagueia sonâmbula e tenta lavar manchas de sangue imaginárias das suas mãos.

Entretanto, em Inglaterra, Malcolm e Macduff planeiam a invasão da Escócia. Malcolm lidera um exército conjuntamente com Macduff e Siward, Conde de Northumbria contra o castelo de Dusinane. Enquanto estão acampados na montanha da Birnam, ordenam aos soldados que cortem troncos de árvore e os usem para camuflar os seus números, cumprindo assim a segunda profecia. Entretanto, Macbeth sabe da morte da sua mulher e profere um solilóquio famoso “amanhã, e amanhã e amanhã”. A peça não refere a causa da morte, presume-se que tenha sido suicídio.

Segue-se a batalha, que culmina com a chacina do jovem Siward e o confronto de Macduff com Macbeth. Macbeth gaba-se se não ter razões para temer Macduff, por não poder ser morto por nenhum homem nascido de uma mulher. Macduff declara que foi arrancado do ventre de sua mãe antes do tempo, e que portanto, não foi nascido de mulher. Tarde demais, Macbeth apercebe-se de que as bruxas o haviam enganado. Segue-se uma luta, com Macduff a decapitar Macbeth fora do palco, cumprindo assim a última das profecias.

Na cena final, Malcolm é coroado, legitimamente, como Rei da Escócia, sugerindo que a paz havia sido restaurada. A profecia acerca de Banquo não se concretiza na peça, no entanto, era um facto conhecido do público no tempo de Shakespeare que esse era um facto verdadeiro, pois Jaime I de Inglaterra era supostamente descendente de Banquo.

Da análise da peça, extraem-se conclusões interessantíssimas, a primeira prende-se com a traição. Macbeth torna-se Senhor de Cawdor apenas após o titular anterior se haver rebelado contra o Rei, continuando assim uma tradição de traição entre os poderosos. A peça desenvolve-se em torno do conceito de a ambição ser um agente corruptor da moral. Durante a peça, as personagens têm várias visões, o que reforça a tese da peça de que a traição corrompe a mente. A ambiguidade moral de que o personagem principal parte, transforma-se num mal crescente ao longo da peça. Ao princípio Macbeth está relutante em cometer o assassínio, mas, com o avançar da história, cada vez se torna mais fácil, no ponto de viragem da peça, Macbeth decide que é tão fácil continuar a matar como seria arrepender-se.

É uma peça para ver ou ler e depois reflectir, a não perder para os que se preocupam com os dilemas morais que confrontam quem tem a tarefa de usar o poder.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Autoridade ou Poder?

Hoje trago-vos um simples apontamento que se enquadra no tema da Liderança. Uma pequena explanação da diferença entre autoridade e poder e consequências desta diferença, que parece subtil mas, uma vez percebida, abre todo um novo mundo de possibilidades à acção do político. Até breve.

14- Autoridade e Poder

Há uma diferença essencial entre os conceitos de autoridade e poder, é que o poder é factual enquanto que a autoridade é relativa, todos temos um certo grau de autoridade, que podemos exercer, enquanto que o poder é exclusivo de quem tenha uma determinada posição. O poder é capacidade de fazer, enquanto que autoridade é capacidade de fazer crescer. De facto, a autoridade é a capacidade de autor e o autor é aquele que faz crescer, defende-se que a autoridade é o valor que se reconhece a uma pessoa que é capaz de nos fazer crescer num dado aspecto, um exemplo deste conceito é fácil de apresentar: Um professor de uma qualquer disciplina é, para nós, uma autoridade nessa área enquanto nos possa ensinar algo, depois disso, deixamos de lhe reconhecer autoridade.

A autoridade tem de ser reconhecida pelo outro, enquanto o poder, não. Autoridade e poder não são sinónimos. Autoridade vem do Latim “autoritas”, que se traduz livremente como “capacidade de autor”. Poder tem origem no latim “potestas”. Em política, “autoridade” é frequentemente confundida com “poder”, no direito Romano, “auctoritas” é usado em oposição a “potestas” ou a “imperium”. Um Senador, na política romana, não era um magistrado, (vide o nosso artigo, publicado anteriormente sobre a política romana), trabalhava somente ao nível da influência pessoal, detendo autoridade sem deter poder. O significado de “autoridade” difere do significado de poder, por este último significar a capacidade de atingir certos fins e a primeira, a legitimidade, justificação e o direito de os atingir. Temos, neste caso o exemplo de Mohandas Ghandi, que nunca teve qualquer espécie de poder, no entanto, a demonstração da sua autoridade moral e política era de tal forma elevada que levou 800 milhões de indianos a seguirem incontestavelmente a sua liderança.

Paradoxalmente, costumamos referir-nos aos polícias como agentes da autoridade, o que, de facto, não são, o que são é agentes do poder, tornam-se agentes de autoridade somente quando são capazes de nos fazer perceber, por meio da sua autoridade pessoal e não pelo poder que lhes está conferido, que certa ou determinada atitude ou acção não é moralmente correcta. O poder está ligado à Lei e a autoridade está ligada à legitimidade. Um agente de polícia nunca pode abusar da autoridade, somente pode abusar do poder.

Max Webber, na sua obra “Conceitos Básicos de Sociologia”, afirma, “Por poder entende-se cada oportunidade ou possibilidade existente numa relação social que permite a um indivíduo cumprir a sua própria vontade”.

Grande parte do debate sociológico recente sobre o “poder”, gira em torno do problema de definir a sua natureza como permissiva ou restritiva. Nestes termos, o “poder” pode ser visto como um conjunto de maneiras de restringir a acção humana, mas também como aquilo que permite que a acção seja possível, pelo menos dentro de uma certa medida. Grande parte desta discussão está relacionada com os trabalhos de Foucault que, na sequência de Maquiavel, vê o “poder” como “uma complexa situação estratégica numa determinada sociedade”. Sendo meramente estrutural, o conceito de Foucault engloba tanto as características restritivas como as permissivas.

A imposição não requer necessariamente da coacção (força ou ameaça de força). Assim, o “poder”, no sentido sociológico, inclui tanto o poder físico como o poder político, a par de muitos outros tipos de poder existentes.

Poder-se-ia definir o “poder” como a maior ou menor capacidade unilateral (real ou percebida) ou potencial de produzir mudanças significativas, tipicamente, sobre as vidas de outras pessoas, através das acções realizadas pelo próprio ou através de terceiros.

A utilização do poder com base numa interpretação evolucionista aplicada aos indivíduos está relacionada com a finalidade de permitir a uma pessoa desenvolver-se até ao mais elevado nível de conforto que possa alcançar dentro da sua esfera social.

Depois de percebermos isto, acrescenta-se que o poder está relacionado com o verbo ter, ou se tem ou não se tem poder. A autoridade está relacionada com o verbo ser, ou se é ou não se é uma autoridade. Apesar do exercício do poder ser endémico nas comunidades humanas, é efectivamente a autoridade que provoca as mudanças, pois trabalha ao nível do ser e não ao nível do ter, o que se tem, pode ser retirado, enquanto que o que se é, apenas pode ser transformado. Afirma-se, por isso, que a liderança exercida no campo da autoridade é sempre melhor recebida que quando é exercida no campo do poder, e isso faz toda a diferença quando o papel do líder é entendido com um objectivo de transformação da realidade.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

O Príncipe, de Nicolau Maquiavel

Hoje, apresentaremos aos nossos leitores “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel, que é provavelmente a obra mais citada nas análises políticas desde o Séc. XVI, quando foi pela primeira vez impressa. Até à publicação desta obra, os governantes da Europa Ocidental justificavam as suas acções citando Erasmo de Roterdão, a “Bíblia”, ou algum dos autores clássicos como Platão, Aristóteles ou Séneca. A partir de Maquiavel, as coisas nunca mais foram iguais. O pequeno funcionário público de Florença acabou por passar para o papel a justificação teórica para um novo mundo no que diz respeito às acções dos governantes e daqueles que aspiram à governação dos estados.

Por se ter baseado nas práticas políticas e diplomáticas da Itália do seu tempo, dividida em dezenas de territórios independentes em que tudo valia para ascender à governação e toda a espécie de indivíduos sem escrúpulos vagueava de corte em corte à espera da sua oportunidade para participar num dos inúmeros esquemas e conspirações que se efectuavam de tempos a tempos, Maquiavel acabou por dar corpo a uma teoria política nova, ao analisar os actos dos governantes do seu tempo à luz do conhecimento que tinha da política romana da antiguidade. Com isto, introduziu o empirismo na política e fundou, talvez sem intenção, a Filosofia Política.

O livro a que chamou “De princitatibus” (Dos Principados), é hoje em dia conhecido como “O Príncipe” e defende a tese de que há um comportamento próprio para quem quer exercer o poder de forma duradoura, essa teoria tem vencido as eras e foi, ao longo dos tempos aplicado a tudo, desde a gestão dos estados, à direcção de empresas, passando pela luta política dentro dos partidos. Vale a pena conhecer a fundo pois há mesmo quem pratique esta teoria. Maquiavel justificou o governo pela força em vez da lei e “O Príncipe” parece justificar todas as acções usadas para perpetuar o poder. É um estudo clássico do poder, como o usar, expandi-lo e usá-lo com o máximo de efeito.

Preparem-se, que o texto de hoje é longo. Apresento-vos “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel.


13 – O Príncipe, de Nicolau Maquiavel

“O Príncipe” é um livro escrito por Nicolau Maquiavel, em 1512, cuja primeira edição foi publicada cinco anos após a sua morte, em 1532. É, nada mais, nada menos, que um manual de conduta para governantes, do género do Institutio Principis Christiani de Erasmo, onde se descreve a forma de conduzir os assuntos internos e externos, e, na parte mais importante, como conquistar e manter um principado. Com este texto, Maquiavel deixa de lado o tema da República, que aprofundou nos “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, para se dedicar a uma tese que pretenderia propor a monarquia como solução para a unificação da Itália, que à época estava dividida em dezenas de principados e cidades-estado.

O “pequeno opúsculo”, como Maquiavel o descreveu, é composto por uma dedicatória a Lourenço II de Médici, seguida de vinte e seis capítulos. Em “O Príncipe”, Maquiavel teoriza como ideal um principado absoluto, no entanto, o autor havia sido formado na escola republicana e o seu modelo era a República Romana, exaltada por si nos “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, que constitui uma ode à participação directa do povo no governo. Alguns analistas sustentam a hipótese de “O Príncipe” ter sido uma espécie de manual da preversidade da tirania. O debate sobre esta questão está em aberto, contra a hipótese de que Maquiavel não teria passado de um mero oportunista, estando disposto até a aceitar a ideia do absolutismo para conseguir uma posição política de relevo, sugerindo que o seu príncipe se tornaria um modelo universal de chefe de estado, fosse qual fosse a sua forma de governo, em Monarquia ou numa República. Ultimamente, tem sido prioposto que a sua vontade de escrever “O Príncipe” terá surgido do agravar da situação em Itália no final do Séc. XV. Nessa época, a Itália encontrava-se emersa em lutas internas pelo poder. Maquiavel pode ter escrito o seu tratado com o objectivo de incitar os príncipados Italianos a tomar as rédeas da situação, crendo que a única solução para resolver o problema, naquele momento, fosse a instituição de um poder do tipo monárquico.

O estilo literário é o típico de Maquiavel, sendo tão concreto quanto deve ser para fornecer um modelo imediatamente aplicável, não estando presentes grandes ornamentações retóricas, no entanto faz um uso maciço de parábolas, alegorias e metáforas para sublinhar a exactidão das suas propostas. As referências a acontecimentos da sua época são numerosas, dizendo respeito, sobretudo ao reino de França, mas também aparecem referências à antiguidade clássica, referindo-se ao Império Persa de Ciro, a Alexandre da Macedónia, às polis gregas e à história de Roma. Maquiavel constrói o seu modelo observando a realidade, ou, dito de outra forma, a realidade factual. O léxico não é erudito, trata-se antes de um nível discurso muito acessível, quase básico, como que a acentuar a intenção do autor de tornar este texto acessível a todos. Todo o escrito é caracterizado por um léxico conotativo e uma forte expressividade, excluindo a dedicatória e o último capítulo que estão num estilo diferente da parte principal da obra. A característica principal deste texto é a demonstração de teorias baseadas sobre hipóteses. Apresentando duas hipóteses, Maquiavel resolve rapidamente a primeira para depois se deter longamente na segunda, demonstrando-a, o que dá a esta obra um carácter científico. Os títulos dos capítulos, no original, estão todos em latim, com a correspondente tradução para italiano feita pelo próprio Maquiavel, o que se explica por, na sua época, a titulação em latim ser essencial para conferir dignidade e prestígio ao texto.

Com este texto, Maquiavel pretende demonstrar que os objectivos de conservar e potenciar o poder do estado justificam todas as acções do Príncipe (princeps, ou primeiro cidadão), mesmo que este vá contra as leis da moral. A censura jesuítica sintetizou esta intenção com uma expressão que perdura até hoje: “os fins justificam os meios”. No entanto, Maquiavel afirma que tal comportamento só é válido com o fim de conseguir a salvação do Estado, o qual, se necessário, deve estar à frente das convicções e da ética pessoal do príncipe, pois o padrão não deve ser o da sua pessoa, mas o do servidor do estado. Modernamente, e num exemplo português, podemos distinguir esse tipo de comportamento na acção dos Presidentes da República (que são princeps de facto), que frequentemente colocam os interesses nacionais à frente dos seus interesses ou convicções pessoais.

O discurso de abertura d’O Príncipe define métodos efectivos de governo para diferentes tipos de principados, posto isto, o autor dedica-se a descrever o príncipe perfeito. As qualidades que Maquiavel atribui ao príncipe ideal são nos dia de hoje citadas em inúmeros cursos de Liderança, constituindo a base de muitas teorias nessa área do conhecimento, tendo sido baseadas nas figuras de César Bórgia e, provavelmente, D. João II, de Portugal. De acordo com este autor, um príncipe, ou nos tempos modernos, um líder, deve ter a disponibilidade para imitar o comportamento dos grandes homens, no caso vertente, os da Roma antiga, deve ter a capacidade de mostrar a necessidade de um governo para o bem do povo, deve dominar a arte da guerra por forma a garantir a sobrevivência do Estado, deve ser capaz de compreender que o mal estimulado pode ser essencial para manter a estabilidade e o poder, deve ser prudente, deve ter a inteligência de procurar conselhos sempre que necessário, deve ter a capacidade de ser um grande simulador e ser dissimulado, e, finalmente, deve conseguir controlar a sorte através da sua virtude.

De acordo com Maquiavel, a natureza humana é imutavelmente má. Sendo os homens maus, a paz não é eficaz porque significa a inexistência de armas, portanto só existem dois dissuasores da maldade: as alianças e as armas. Afirma Maquiavel que a natureza humana é imutável e que não varia com os contextos históricos. Esta teoria dá vida a uma concepção da história do tipo naturalista, em que a história é cíclica e se volta sempre ao passado. Deste conceito surgem numerosas referências ao passado, nas quais Maquiavel, não só encontra homens virtuosos nos quais o seu príncipe se deveria inspirar como encontra situações que o príncipe provavelmente irá defrontar, mesmo que num contexto histórico e social diferente.

O termo virtude, neste escrito de Maquiavel, muda de significado. A virtude é o conjunto de competências que servem ao príncipe para se relacionar com a sorte, isto é, com os eventos externos. A virtude é uma união de energia e inteligência. O príncipe deve ser inteligente, mas também eficaz e enérgico. A sorte ocupa então um papel de oportunidade. Os dotes do político permanecem meramente potenciais se ele não encontra a ocasião adequada para os afirmar, e vice-versa, a ocasião permanece meramente potencial se um político virtuoso não se aproveita dela. A ocasião é, então, apresentada como uma condição negativa, que serve de estímulo a uma virtude excepcional. Maquiavel impõe que a virtude humana se pode impor à sorte através da capacidade de previsão e do calculismo. Nos momentos de calma, o político hábil deve prever o futuro próximo e predispor as acções necessárias para as contingências que adivinha.

Adicionalmente, Maquiavel concebe a religião como um instrumento de governação, isto é, um meio através do qual manter unida uma população em nome de uma única fé. A religião, para Maquiavel, é uma religião de Estado que deve ser utilizada para fins eminentemente políticos e especulativos, um instrumento de que o príncipe dispõe para obter o consenso habitual do povo. “O Príncipe” esteve sempre no index dos livros proíbidos da Igreja Católica porque, em parte, desmontava as teorias de Santo Agostnho e São Tomás de Aquino mas sobretudo porque Maquiavel anula qualquer relação entre ética e política. “O Píncipe” desafiou a filosofia escolástica da Igreja Católica e a sua leitura contribuiu para a cimentação do pensamento Iluminista e, consequentemente, do mundo moderno, ocupando uma posção única na evolução do pensamento na Europa.

Os pontos de vista expostos por Maquiavel podem parecer extremos, no entanto, toda a sua vida foi passada em Florença, numa época de conflitos políticos intermináveis, por isso, torna-se compreensível que tenha enfatizado a necessidade da estabilidade nos domínios de um príncipe. Aparentemente, com esse fim, Maquiavel escolheu ignorar a relação entre ética e política, o que desconcertou muitos dos seus contemporâneos. Na realidade, Maquiavel parte da concepção clássica de virtude e altera a ligação entre ética e política ao definir o conceito de virtude para um príncipe, que, segundo ele, deve tentar ser visto como compassivo, fiável, solidário e religioso, quando, na realidade, raramente isso é possível. Os últimos capítulos concentram-se sobretudo no estado da Itália à época, incluindo uma exortação à libertação da Itália das mãos dos bárbaros estrangeiros.

As teorias explanadas n’O Príncipe são muitas vezes igualadas a métodos perversos e manhosos que um aspirante a príncipe pode usar para chegar ao trono, ou um príncipe em exercício pode usar para estabelecer e manter o seu reinado, mas, de acordo com Maquiavel, os princípios morais devem presidir em todas as circunstâncias, sobretudo se estiver em causa a ponderação de acções sórdidas ou desumanas. É imperativo que o príncipe esteja disposto a fazer tudo o que seja necessário para manter o poder, no entanto, Maquiavel enfatiza que acima de tudo, o príncipe não se deve colocar em condições de ser odiado. E dá uma resposta concreta à diferença entre ser temido e ser amado: “…um príncipe sábio deve-se estabelecer no seu domínio e não no de outros, e deve evitar ser odiado, conforme se demonstrou”, ou ainda “É bom ser simultaneamente amado e temido, contudo, se não se puder ser ambos, é melhor ser temido que amado”.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Maquiavel, Maquiavélico, Maquiavelismo

Nenhum breviário político, nem sequer o Barreirense, está verdadeiramente completo sem uma entrada sobre “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel. Hoje e no próximo texto, preencheremos essa lacuna, falando sobre o livro em si, futuramente, dentro do mesmo âmbito abordaremos as biografias de Nicolau Maquiavel, César Bórgia e D. João II.

Não há palavras que tenham sido mais usadas e abusadas em política como as que estão relacionadas com o nome deste funcionário público florentino do Séc. XVI, o que faz deste artigo, certamente, um dos mais esperados da série. Maquiavel, maquiavélico e maquiavelismo são palavras usadas frequentemente de forma pejorativa, por todos nós, mas será que todos conhecemos o verdadeiro significado destes idiomas? Por nos parecer que é possível que não, dedicámo-nos à tarefa de tentar explicar de forma simples, a sua origem, significado e aplicação.

12- Maquiavel, Maquiavélico, Maquiavelismo

Estas expressões derivam do nome de Nicolau Maquiavel, um italiano renascentista, e o sentido que lhes é dado resulta dos conceitos apresentados por este na sua obra “De principatibus” (Dos Principados), modernamente conhecida como “O Príncipe”, um pequeno tratado de política que não é, de todo, representativo do conjunto da obra deste autor. Entre as suas obras, destacam-se “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, “A Arte da Guerra” “Histórias Florentinas “, a peça “A Mandrágora”, além de inúmeros tratados histórico-políticos e a sua correspondência particular, que foi organizada pelos descendentes.

“O Príncipe” foi escrito por volta de 1513 mas só foi publicado pela primeira vez em 1532, cinco anos após a morte do autor. É um tratado de doutrina política composto enquanto Nicolau Maquiavel se encontrava desterrado, em San Casciano, por ter sido acusado de conspiração contra os Médicis. Maquiavel dedicou a obra a Lourenço II de Médici, na esperança de reconquistar o cargo de Secretário da República. Trata-se, sem dúvida, do seu escrito mais famoso, e das suas máximas nasceu o substantivo “maquiavelismo” e o adjectivo “maquiavélico”. É uma obra não integrável em nenhum género literário em particular, porque não tem as características próprias de um verdadeiro tratado. Trata-se, na verdade, de um pequeno livro de divulgação daquilo que Maquiavel considerava serem as virtudes de um Príncipe ideal ou perfeito.

As ideias expressas nesse pequeno opúsculo estão na origem da moderna Filosofia Política e têm encontrado as inspirações e aplicações mais diversas e disparatadas, sobretudo desde o início do Séc. XX. O texto, em si, foi comentado pela maior variedade de líderes políticos e estadistas de que há memória, de Napoleão Bonaparte a Mussolini, passando por Lenine e Bismarck. Chega a ser vulgar questionar-se qual das teorias políticas do século passado não teve nada que ver com a obra do italiano e até a Economia Política parece dever algo a este texto renascentista.

A obra de Maquiavel está intimamente relacionada com a época em que foi escrita, funcionando como uma análise da acção política no seu tempo. O método utilizado divergiu da tradição Medieval por se basear no empirismo e na observação dos factos à luz da experiência histórica da Roma Antiga. Como pressuposto, Maquiavel surge com uma ideia original, a proposta de que existe uma ética política diferente da religiosa, ou seja, o fim da política, para ele, seria a manutenção do Estado.

Historicamente, o primeiro a pronunciar-se sobre esta obra terá sido o Cardeal inglês Reginald Pole, que se disse horrorizado com as influências que tal obra estaria exercendo sobre Lorde Cromwell. Os Jesuítas, (a quem dedicaremos outra entrada deste breviário), acusaram-na de ser contra a Igreja e convenceram o Papa Paulo IV a colocá-la no Index Librorum Prohibitorum (a lista negra de obras literárias da época), em 1559. Em França, um huguenote, (sobre os quais também falaremos), chamado Inocêncio Gentillet escreveu um livro no qual acusou Maquiavel de ateísmo e os seus métodos, de causadores do Massacre da noite de São Bartolomeu. Tendo sido muito difundida em Inglaterra, a obra do italiano contribuiu como nenhuma outra para a visão apresentada pelo teatro britânico do Séc. XVI, encontrando-se cerca de 400 peças que citam Maquiavel, todas vinculando seu nome à maldade, à ardilosidade e à falta de escrúpulos.

Regra geral, os críticos de Maquiavel basearam-se no “Príncipe”, analisando o texto isoladamente das restantes obras de Maquiavel, e sem levar em conta o contexto em que foi escrito. Houve ainda quem tentasse conciliar o seu pensamento com a Igreja ou com o Nacionalismo, mas sem sucesso, pois não passavam de tentativas de manipulação das ideias do autor. Presentemente, as análises feitas, procuram levar em conta outros textos do italiano, contextualizando os seus escritos, e concluindo que Maquiavel não inventou qualquer teoria política, meramente tendo descrito as práticas que viu à sua volta, teorizando em torno delas.

As análises de “O Príncipe” começaram a difundir-se com os movimentos da Reforma e da Contra-Reforma. A partir daí, o autor e as suas obras passam a ser vistos como perniciosos, tendo-se chegado a inventar e a atribuir a Maquiavel a expressão “os fins justificam os meios”, que não consta em qualquer parte da sua obra. A atribuição desta característica à obra do florentino está também ligada à visão de que estaria na base do absolutismo, ao lado das obras de Hobbes e Bossuet, mas é uma interpretação que falha por carecer da análise de outro grande texto do autor, os “Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio”, em que Maquiavel elogia a forma republicana de governo.

Com respeito a isso, Espinoza e Rousseau, foram adeptos da teoria de que, ao escrever “O Príncipe”, Maquiavel tentava alertar o povo sobre os perigos da tirania, ao invés da tese popular de que o seu livro é um manual para autocratas. Rousseau chegou a escrever: “É o que Maquiavel fez ver com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as e grandes, aos povos”.

Na Europa do Séc. XIX, durante as Guerras Napoleónicas, em que a Alemanha e a Itália se encontravam fragmentadas e os nacionalismos internos davam os seus primeiros passos, forma-se a visão de Maquiavel como um nacionalista exaltado, disposto a tudo pela união e defesa da Itália. O último capítulo de “O Príncipe” abre, certamente, as portas a essa interpretação, consistindo de uma defesa apaixonada de uma Itália unificada conjugada com a afirmação de que um povo só pode ser feliz e próspero se estiver unido. Hegel e Herder foram dois dos defensores desta última hipótese, que consolidaram com base no seguinte texto, desse capítulo:

"Num período de infortúnio, quando a Itália perecia na ruína e era teatro de guerras levadas a cabo por príncipes estrangeiros, quando ela oferecia os meios para essas guerras e era, ao mesmo tempo a presa das batalhas, quando alemães, espanhóis, franceses e suíços a destroçavam e governos estrangeiros decidiam o destino dessa nação – no profundo sentimento da miséria geral do ódio, da desordem e guerra, um político italiano concebeu com fria circunspecção a concepção necessária para libertar a Itália, unindo-a num só Estado".

- Continua – A seguir: O Príncipe, de Nicolau Maquiavel

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

As Trinta e Seis Estratégias

“As Trinta e Seis Estratégias” são uma colecção de provérbios chineses usados para ilustrar tácticas e estratégias militares. O nome vem do sétimo volume biográfico do “Livro de Qi”, que contém a biografia de Wang Jingzé. Wang foi um general que serviu o Qi do Sul, (China do Sul), desde o primeiro Imperador da Dinastia Gao. Quando o Imperador Ming subiu ao poder e mandou executar uma série de membros da corte e da família real por recear que fossem uma ameaça ao seu reinado, Wang pensou que iria a seguir e revoltou-se. Quando Wang ouviu dizer que o Marquês de Donghun, filho do Imperador Ming, havia fugido ao saber da rebelião, comentou que “das trinta e seis estratégias do Senhor Tan, a retirada era a sua melhor, e o melhor que pai e filho têm a fazer é fugir”. O Senhor Tan aqui referido é o General Tan Daoji da Dinastia Liu Song, que foi forçado a retirar após um ataque falhado ao Wei do Norte, e Wang menciona o seu nome com desprezo por ser um exemplo de covardia.

Deve-se notar que o número trinta e seis foi usado por Wang como uma figura de expressão, com o objectivo de referenciar “numerosas estratégias”em lugar de um qualquer número específico. A escolha deste termo é uma referência ao I Ching, onde seis é o numero do Yin, que possui muitas das características comummente associadas aos esquemas perversos utilizados em estratégia militar. Como trinta e seis é o quadrado de seis, funciona como metáfora para “numerosas estratégias”. Apesar de Wang não se referir a nenhum número específico de estratégias, depois desta sua afirmação foi criado um conjunto de trinta e seis provérbios com ligação a tácticas militares que dele levou emprestado o nome.

As “Trinta e Seis Estratégias” têm sido atribuídas alternadamente quer a Sun Tzu, quer a Zhuge Liang, mas nenhum deles foi considerado o seu verdadeiro autor pelos historiadores. A versão prevalecente é de que os provérbios tiveram a sua origem tanto na tradição oral como na escrita com inúmeras versões compiladas por diferentes autores ao longo da história da China. “As Trinta e Seis Estratégias” aparecem muitas vezes ligadas aos escritos de Sun Tzu, mas diferem da “Arte da Guerra” por serem um livro de tácticas em lugar de um texto sobre grande estratégia.

O manuscrito original que a seguir se apresenta traduzido por nós, a partir do inglês, foi descoberto na província de Saanxi, na China, e foi impresso por um editor local em 1941. O seu autor ou data de elaboração permanecem desconhecidos até hoje. Parecendo-nos de suprema importância a divulgação desta pérola do pensamento estratégico junto do público, aventurámo-nos a esta tarefa, que não pretende ser senão uma aproximação ao que seria um bom trabalho editorial, aconselhando os interessados a procurar numa livraria alguma publicação sobre este tema que contenha uma análise mais detalhada e avisada do seu conteúdo.

Um ditado popular chinês diz que “Só existem trinta e seis estratégias debaixo do céu”, significando que todas as tácticas usadas em batalhas históricas ou modernas são variações das trinta e seis originais. Pode não ser assim tão simples, no entanto, vale a pena pensar sobre isso…

11 – As Trinta e Seis Estratégias

“As Trinta e Seis Estratégias” estão divididas num Prefácio, seis capítulos contendo seis estratégias cada e um Posfácio de que se perdeu o texto. Os primeiros três capítulos decrevem em traços gerais estratégias para uso em situações de vantagem, enquanto os últimos três capítulos contêm estratégias mais apropriadas para condições desvantajosas. O texto original de “As Trinta e Seis Estratégias” também é bastante breve, com cada provérbio a ser acompanhado por um curto comentário de não mais que uma frase ou duas que explicam como cada provérbio se aplica às tácticas militares. Estes trinta e seis provérbios referem-se a trinta e seis batalhas históricas, retiradas principalmente das fábulas históricas do Período dos Estados Guerreiros e do Período dos Três Reinos. Por razões de simplicidade, não colocaremos aqui o prefácio nem o pouco que existe do posfácio.

Capítulo 1 – Estratégias vencedoras

1- Enganar o céu para atravessar o oceano

Movimentar-se na escuridão e nas sombras, ocupar lugares isolados ou esconder-se só vai atrair a atenção e a suspeita. Para baixar a guarda de um inimigo deve-se agir em campo aberto e disfarçar as verdadeiras intenções atrás das actividades comuns do dia-a-dia.

2- Assediar Wei para salvar Zhao

Quando o inimigo é demasiado forte para se atacar frontalmente, então deve-se atacar algo que é precioso para ele. Fica a saber que ele não pode ser superior em todas as coisas, algures, há uma falha na armadura, uma fraqueza que pode ser atacada em alternativa.

3- Matar com uma faca emprestada

Ataca usando a força de outro (numa situação em que usar a própria força não é favorável). Convence um aliado a atacar o teu inimigo, suborna um deles para se tornar traidor ou usa a força do inimigo contra ele próprio.

4- Trocar o trabalho pelo lazer

É uma vantagem escolher o tempo e o lugar da batalha. Desta maneira saberás quando e onde a batalha vai decorrer, enquanto o teu inimigo não. Encoraja o teu inimigo a gastar a sua força em actividades fúteis enquanto conservas a tua energia. Quando ele estiver exausto e confuso, atacas com energia e propósito.

5- Saquear a casa em chamas

Quando um Estado está envolvido em conflitos internos, quando a doença e a fome dizimam a população, quando a corrupção e o crime estão em crescendo, então vai ser incapaz de lidar com uma ameaça externa. Essa é a hora de atacar.

6- Fazer um som no Este e atacar no Oeste

Em qualquer batalha o elemento da surpresa pode proporcionar uma vantagem devastadora. Mesmo cara-a-cara com um inimigo, a surpresa pode ser usada, atacando onde ele menos espera. Para fazer isto, deves criar uma expectativa na mente do inimigo, através do uso de uma finta.

Capítulo 2 – Estratégias para lidar com o inimigo

7- Criar algo do nada

Usar a mesma finta duas vezes. Tendo reagido à primeira e provavelmente também à segunda, o inimigo vai hesitar em reagir à terceira finta. Então a terceira finta é o verdadeiro ataque que vai apanhar o teu inimigo com a guarda em baixo.

8- Esgueirar-se pela passagem de Chencang

Ataca o inimigo com duas forças convergentes. A primeira é o ataque directo, um que é óbvio e para o qual o inimigo vai preparar a defesa. O segundo é o indirecto, o ataque sinistro que o inimigo não espera e que o faz dividir as suas forças à última hora levando-o à confusão e ao desastre.

9- Ver as árvores a arder do outro lado do rio

Atrasa a tua entrada no campo de batalha até todos os outros participantes estarem cansados de lutar uns contra os outros. Então entra com toda a força e apanha os pedaços.

10- Esconder uma faca atrás de um sorriso

Sê simpático e encanta o inimigo. Quando tiveres ganho a sua confiança, move-te contra ele em segredo.

11- Sacrificar a ameixeira para preservar o pessegueiro

Há circunstâncias em que deves sacrificar os objectivos de curto prazo de forma a atingir o alvo de longo prazo. Esta é a estratégia do bode expiatório em que alguém sofre as consequências para que todos os outros não o façam.

12- Aproveitar a oportunidade para roubar uma cabra

Enquanto fizeres os teus planos, sê suficientemente flexível para tirar vantagem de qualquer oportunidade que se apresente, por mais pequena que seja, e agarra-te a qualquer ganho, por mais pequeno que seja.

Capítulo 3 – Estratégias de ataque

13- Agita a cobra, batendo na relva à sua volta

Na preparação da batalha, não alertes o inimigo para as tuas intenções ou denuncies a tua estratégia prematuramente.

14- Pedir um cadáver emprestado para ressuscitar a alma

Pega numa instituição, numa tecnologia ou um método que tenha sido esquecido ou abandonado e apropria-te dele para teu uso. Faz reviver algo do passado dando-lhe um novo propósito ou reinterpretando-o para trazer à vida velhas ideias, costumes e tradições.

15- Engodar o tigre para que saia do seu covil na montanha

Nunca ataques directamente um inimigo cuja vantagem deriva da sua posição. Em vez disso, leva-o para fora da posição vantajosa, separando-o assim da sua fonte de força.

16- Para capturar é preciso libertar

Presas encurraladas frequentemente fazem um ataque final desesperado. Para evitar isto, deves fazer o inimigo acreditar que ainda tem uma hipótese de fuga. A sua determinação em lutar vai assim ficar reduzida pelo seu desejo de escapar. Quando no final, a liberdade se prova falsa, a moral do inimigo será derrotada e ele render-se-á sem luta.

17- Atirar um tijolo para apanhar uma pedra de jade

Prepara uma armadilha e leva o teu inimigo a ela usando um engodo. Na guerra, o engodo é a ilusão de uma oportunidade de vitória. Na vida o engodo é a ilusão da riqueza, do poder e do sexo.

18- Derrotar o inimigo capturando o seu chefe

Se o exército inimigo é forte mas está ligado ao comandante apenas por dinheiro ou ameaças, então faz do líder o teu alvo. Se o comandante cair, o resto do exército vai dispersar
-se ou passar-se para o teu lado. Se, no entanto, eles estiverem ligados ao líder por lealdade, então tem cuidado, o exército poderá continuar a lutar depois da sua morte por vingança.

Capítulo 4 – Estratégias do caos

19- Retirar a lenha de debaixo da panela

Quando confrontado com um inimigo demasiado poderoso para combater directamente, deves enfraquecê-lo primeiro, minando as suas fundações e atacando a sua fonte de poder.

20- Apanhar um peixe enquanto a água está turva

Antes de confrontares o teu inimigo, gera confusão para enfraquecer a sua percepção e julgamento. Faz qualquer coisa invulgar, estranha e inesperada pois isso vai levantar a suspeita do inimigo e perturbar o seu pensamento. Um inimigo distraído é mais vulnerável.

21- Remover a carapaça da cigarra

Quando estiveres em perigo de ser derrotado e a tua única hipótese é fugir e reagrupar, então cria uma ilusão. Enquanto o inimigo está focado nesse artifício, então secretamente remove os teus homens, deixando para trás apenas a ilusão da tua presença.

22- Fechar a porta para apanhar o ladrão

Se tiveres uma possibilidade de capturar completamente o inimigo, então deves fazê-lo para levar a batalha ou a guerra a um final rápido e duradouro. Permitir que o inimigo escape é plantar as sementes para conflitos futuros. Mas se ele conseguir escapar, tem cuidado ao persegui-lo.

23- Amigar-se de um Estado distante enquanto se ataca um vizinho

È sabido que nações vizinhas se tornam inimigas enquanto que nações distantes dão melhores aliados. Quando és o mais forte num campo, a tua maior ameaça é o segundo mais forte nesse campo, não é o mais forte de um campo diferente.

24- Obter salvo-conduto para conquistar o Estado de Guo

Usa os recursos de um aliado para atacar um inimigo comum. Assim que o inimigo estiver derrotado, usa esses recursos contra o aliado que te os emprestou em primeiro lugar.

Capítulo 5 – Estratégias de proximidade

25- Trocar as vigas por madeiras podres

Baralha as formações do inimigo, interfere com os seus modos de operar, muda as regras que ele está habituado a seguir, segue ao contrário do seu treino habitual. Desta maneira retirarás os pilares que o sustentam, o elo comum que faz de um grupo de homens uma força de combate eficiente.

26- Apontar para a amoreira enquanto se amaldiçoa a acácia

Para disciplinar, controlar ou avisar outros, cujo status ou posição os exclui da confrontação directa, usa a analogia e a insinuação. Sem nomear nomes directamente os acusados não podem retaliar sem revelar a sua cumplicidade.

27- Fazer-se passar por parvo

Esconde-te atrás da máscara de um louco, um bêbado ou um parvo para gerar a confusão acerca das tuas intenções e motivações. Leva o teu oponente a subestimar as tuas capacidades até que o excesso de confiança o faça baixar a guarda. Então, podes atacar.

28- Remover a escada quando o inimigo chegar ao telhado

Com engodos e enganos leva o teu inimigo até um terreno traiçoeiro. Então, corta-lhe as linhas de comunicação e as rotas de fuga. Para se salvar ele terá de lutar contra ti e contra as forças da natureza.

29- Decorar a árvore com flore falsas

Atar flores de amoreira a uma árvore morta cria a ilusão de que a árvore é saudável. Através do uso do artifício e do disfarce faz uma coisa sem valor parecer valiosa, sem perigo parecer ameaçadora e sem uso parecer útil.

30- Fazer o anfitrião e o convidado trocar de papel

Derrota o inimigo a partir de dentro, infiltrando o seu campo sob pretexto de cooperação, rendição ou tratados de paz. Desta forma consegues descobrir as suas fraquezas e depois, quando o inimigo estiver relaxado, ataca directamente a fonte da sua força.

Capítulo 6 – Estratégias de derrota

31- A armadilha do mel

Manda mulheres lindas ao teu inimigo para causar a discórdia no seu campo. Esta estratégia pode funcionar em três níveis. Primeiro, o governante fica tão enamorado da beleza que negligencia os seus deveres e desvanece a sua vigilância, Segundo, outros machos na corte vão começar a exibir um comportamento agressivo que inflama diferenças menores reduzindo a cooperação e minando a moral. Terceiro, outras fêmeas na corte, motivadas pela inveja e ciúme, começam a planear intrigas agravando ainda mais a situação.

32- A táctica do forte vazio

Quando o inimigo é superior numericamente e a tua situação é tal que esperas ser derrotado a qualquer momento, então abandona qualquer aparência de preparação militar e age casualmente. A não ser que o inimigo tenha uma descrição precisa da tua situação, esse comportamento anormal vai-lhe despertar suspeitas. Com sorte, será dissuadido de atacar.

33- Fazer os espiões do inimigo semear a discórdia no seu próprio campo

Mina a capacidade de o teu inimigo lutar provocando a discórdia entre ele e os seus amigos, aliados, conselheiros, família, comandantes, soldados e população. Enquanto ele estiver ocupado a resolver disputas internas, a sua capacidade de atacar ou de se defender, está comprometida.

34- Ferir-se a si próprio para ganhar a confiança do inimigo

Fingir-se ferido tem duas aplicações possíveis. Na primeira, o inimigo é levado a relaxar a sua guarda, uma vez que já não te considera uma ameaça eminente. A segunda é uma maneira de te insinuares junto do teu inimigo, fingindo que a ferida foi provocada por um inimigo comum.

35- Uma corrente de estratégias

Em matérias importantes deve-se usar uma corrente de estratégias aplicadas simultaneamente e consequentemente umas às outras, como uma corrente de estratégias. Manter diversos planos em funcionamento num esquema geral, no entanto, se uma destas estratégias falhar, a corrente quebra e todo o esquema falhará.

36- Se tudo o resto falhar, retirar

Se se tornar óbvio que o teu actual plano de acção vai levar a uma derrota, então retira e reagrupa. Quando o teu lado está a perder só há três escolhas possíveis: render-se, entrar em compromisso ou fugir. A rendição é a derrota completa, o compromisso é meia derrota, mas a fuga não é derrota. Enquanto não fores derrotado, ainda tens uma hipótese.

O testa-de-ferro

Quando o professor Pedro Mateus me desafiou a elaborar uma entrada deste breviário sobre a expressão “testa-de-ferro”, estávamos longe de imaginar a dificuldade da tarefa que se seguiria. Todos sabemos que a expressão é usada para designar alguém numa posição nominal de liderança que não tem o poder efectivo, funcionando como uma fachada de outrem. O curioso foi a extraordinária dificuldade de situar no tempo a origem da expressão.

Todos os dicionários me dirigiram no sentido de um sinónimo, “carranca”, e nenhuma das enciclopédias que consultei apontava qualquer referência à origem do termo. Assim, depois de muita pesquisa, o testa-de-ferro acabou por dar origem a duas entradas neste breviário, que são aqui publicadas juntas neste artigo. A primeira, diz respeito ao significado da palavra testa-de-ferro, a segunda, ao homem que deu origem a que esta expressão se utilizasse no castelhano “testafierro” e no português: Emanuel Felisberto de Sabóia, chamado o Testa de Ferro.

9 – Testa-de-ferro, carranca, títere, aríete.

A primeira aparição da expressão testa-de-ferro aparece associada ao aríete, uma máquina de guerra inventada pelos romanos que servia para arrombar portas de fortalezas, esta máquina era constituída por um forte tronco de freixo com uma testa de ferro ou de bronze que tinha geralmente a forma da cabeça de um carneiro. O nome aríete vem do latim “ariete” que significa carneiro. Nos navios de guerra da antiguidade também se usavam estas testas de ferro, em esporões que eram colocados nas proas das trirremes e que tinham como propósito arrombarem os navios adversários na altura da colisão.

A “carranca”, “figura de proa” ou “leão de barca” é uma figura decorativa esculpida em madeira, frequentemente com formas femininas ou animais, que se usou na proa os navios entre os séculos XVI e XIX. A prática foi introduzida com os galeões do século XVI apesar de anteriormente a isso, alguns tipos de navios terem alguma espécie de decoração ou ornamentação da proa.

Tal como a decoração da popa, a carranca tinha por objectivo indicar o nome da embarcação a uma sociedade iletrada, como era a de 1500, para além de demonstrar a riqueza e o poder do armador. No auge do período Barroco, alguns navios ostentavam figuras de proa gigantescas que pesavam algumas toneladas e chegavam a ter réplicas em ambos os lados do casco.

Uma figura enorme, esculpida em madeira maciça e cravada no topo da proa, prejudicava as qualidades de flutuabilidade do barco. Este facto, aliado ao custo fez com que as carrancas fossem feitas significativamente mais pequenas durante o Séc.XVIII, caindo em desuso por volta de 1800. Depois das guerras Napoleónicas, houve um período de revivalismo desta forma decorativa mas as figuras eram elaboradas apenas da cintura para cima, em lugar das esculturas completas e maciças usadas anteriormente. Os Clippers das décadas de 1850 e 60 tinham figuras completas mas estas eram relativamente pequenas e leves. As figuras de proa enquanto tal desapareceram com o fim dos grandes veleiros. Os primeiros navios a vapor, no entanto, eram decorados com frisos dourados ou escudos de armas nas suas proas. Esta prática durou até próximo da I Grande Guerra.

A palavra carranca também é usada para designar uma marioneta ou um fantoche, sendo sinónimo, neste contexto, de “títere”. Também pode ser sinónimo de caraça, ou, em castelhano, “tapadera”.

Testa-de-ferro aparece pela primeira vez no castelhano “testafierro” por transposição directa do italiano “testa di ferro” do cognome da figura que se segue, que, apesar de ter um significado diferente na língua original, se adequou ao significado que se pretendeu dar a esta expressão, que é o que actualmente conhecemos. Em italiano, a um “testa-de-ferro” chama-se um “uomo di paglia”, (homem de palha), e “testa” é “cabeça”.

10 – Emanuel Felisberto de Sabóia, chamado Testa di Ferro
Emanuel Felisberto, dito Testa di Ferro, nasceu em Chambéry a 8 de Julho de 1528 e faleceu em Turim a 30 de Agosto de 1580, foi Conde de Asti, Duque de Sabóia, Príncipe de Piemonte e Conde de Aosta, Moriana e Nizza. Foi também Rei titular de Chipre e Jerusalém onde nunca teve qualquer poder, por isso, o seu nome é até hoje usado para designar alguém que é titular de um lugar de liderança mas que não tem poder efectivo. A seu cognome teve origem no elmo de armadura, que usava a cavalo, que era completamente fechado, como uma cabeça de ferro.
Sendo o segundo filho de Carlos III de Sabóia e de Beatriz de Portugal, foi destinado à carreira eclesiática mas a morte do irmão Ludovico em 1536 destinou-o a herdar o Ducado, transformado em campo de batalha entre as forças francesas e espanholas e ocupado pelas tropas de Francisco I.

Iniciado muito jovem na vida política e militar, em 1543 entrou ao serviço dó Imperador Carlos V, irmão da sua avó Leonor. Com o objectivo de recuperar as suas terras, tomou parte nas vitórias imperiais de Ingolstadt, em 1546, e Muhlberg, em 1547 e nas sucessivas campanhas contra as tropas francesas que culminaram nas batalhas de Metz, em 1552, e Bra, em 1553.
Em 1553 foi nomeado Lugar-Tenente Geral e Comandante Supremo do exército espanhol na Flandres e em 1556 recebe de Filipe II de Espanha, I de Portugal, o cargo de Governador dos Países Baixos. Em 1557, no retomar das hostilidades que se seguiu às efémeras tréguas de Vaucelles, inflige às tropas francesas, guiadas por Ana de Montmorency e Gaspard de Colugny uma pesada e decisiva derrota. O resultante tratado de paz de Cateu-Cambrésis (1559), premiou Emanuel Felisberto com a restituição do seu Estado com excepção de algumas fortalezas, que ficariam aida durante uns anos em mãos espanholas e francesas, e do território de Genebra, ao qual foi reconhecida a independência.
A pacificação foi selada com o matrimónio do Duque de Sabóia com Margarida de Valois, filha de Francisco I de França.

Em 1574, Emanuel Felisberto consegue obter do Rei Henrique III de França as cidades de Savigliano e Pinerolo e em 1573, recebe da Espanha as fortalezas de Asti e Santhià. Tentou longamente, sem sucesso, entrar na posse dos Marquesatos de Monferrato e Saluzzo.
Convencido de que a única possibilidade de sobrevivência do Ducado estava na unificação politico-militar dos inúmeros feudos que o compunham e na concentração do poder na coroa, Emanuel Felisberto aboliu as Congregações Gerais, (uma espécie de estados gerais da província que haviam muitas vezes limitado o poder dos seus predecessores), reformou os estatutos municipais e feudais, suprimiu as antigas autonomias e centralizou o controlo financeiro. Reforçou o elemento piemontês do Ducado com a imposição da língua italiana na legislação e com a tranferência da Capital de Chambéry para Turim, no ano de 1562.

Emanuel Felisberto procurou por todos os meios dar um impulso à economia do Ducado, dilacerada pela devastação da guerra e da ocupação estrangeira. Favoreceu a instalação da canalização, encorajou a imigração de artesãos e colonos, aboliu a servidão da gleba, promoveu o desenvolvimento das manufacturas com isenções e subvenções e multiplicou os institutos de crédito. O resultado desta política foi apenas parcial, mas, em todo o caso, deu ao Ducado os recursos necessários para a constituição de um pequeno exército baseado nas milícias provinciais em vez das anteriores levas feudais e exércitos de mercenários. As fortificações também receberam um novo impulso e a pequena frota naval que constituiu distinguiu-se na batalha de Lepanto, em 1571.

No campo religioso, Emanuel Felisberto seguiu o movimento da Contra-reforma, aplicando conscienciosamente os decretos do Concílio de Trento, mas nunca renunciando à defesa dos direitos do Estado contra a ingerência da Igreja e concedeu aos habitantes dos vales alpinos uma relativa liberdade de culto. Também se ocupou da instrução, transferindo o Studio (Universidade) de Mondovi para Turim em 1566 e potenciando-o com a contratação de professores estrangeiros.

À data da sua morte, Emanuel Felisberto deixou um estado saudável e com capacidade para assumir o papel de potência média nas relações de poder da Itália e da Europa dos Séculos XVII e XVIII. Sucedeu-lhe o único filho, de 18 anos, Carlos Emanuel de Sabóia.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

A Eminência Vermelha e a Eminência Parda

Uma das frases mais ouvidas na referência a políticos e homens de estado é: -“fulano de tal é uma Eminência parda”. A maior parte das vezes este título é atribuído de forma inexacta, chegando a ser lançado de forma mais ou menos pejorativa sobre alguns adversários políticos.

Uma Eminência parda é um conselheiro poderoso ou um actor político que actua secretamente ou não oficialmente. Este termo referiu, na sua origem, François Leclerc du Tremblay, que ficou conhecido como Padre José, que foi conselheiro do Cardeal de Richelieu, chamado de a Eminência vermelha pela cor dos trajes que usava habitualmente. O Padre José era um monge Capuchinho e usava vestes cinzentas. A palavra Eminência designa um Cardeal da Igreja Católica. Apesar de o Padre José nunca ter atingido o posto de Cardeal, a sua associação a Richelieu e a cor da sua roupagem fez com que lhe tivessem dado esse cognome.

Aldous Huxley publicou, em 1941, a sua biografia de Leclerc du Tremblay, “Eminência Parda: Um estudo sobre Religião e Política”, uma leitura a não perder, para quem tenha interesse no tema.

Religião, Política, Diplomacia, Conspiração e Poder, temas de todas as épocas, foram a essência das vidas dos dois homens que lhes apresento hoje: O Cardeal de Richelieu e o Padre José.

Agora que a curiosidade está aguçada, sigamos em frente!


8 – Armand Jean de Plessis, Cardeal-Duque de Richelieu

Em 9 de Setembro de 1585, nasceu, provavelmente em Paris, o quarto filho de François du Plessis, Grande Provoste da França, e de Susanne de La Porte, filha de um jurista famoso, membro da Ordem de Malta, François de La Porte. Deram o nome de Armand Jean du Plessis a este filho, que era o seu terceiro do sexo masculino e que ainda viria a ter mais uma irmã. A mãe de Armand teve dificuldades durante o parto, em consequência, o seu filho teria uma saúde frágil toda a sua vida. Passaria a sua infância no Chateau de Richelieu, a propriedade familiar e terra que lhe daria o nome.

Quando Armand Jean tinha apenas cinco anos de idade, o seu pai morreu na Guerra Francesa das Religiões, deixando a família endividada. A viúva recebeu do Rei Henrique III, cinquenta mil libras de ouro e o Bispado de Luçon, o que possibilitou à família ultrapassar as dificuldades. Aos nove anos é enviado para o Colégio de Navarre, em Paris, onde iria estudar Filosofia. Mais tarde, inscreve-se na Academia, uma espécie de escola militar onde se instruíam os futuros oficiais do exército francês, nessa época, o seu destino parecia ser uma carreira de armas, seguindo as pisadas do pai.

Entretanto, a família apropriara-se da maior parte das receitas do Bispado para uso privado, o que provocou os clérigos que pretendiam o dinheiro para fins eclesiásticos. Com o fim de proteger essa importante fonte de receitas, Susanne de La Porte propôs fazer o seu segundo filho, Alphonse, Bispo de Luçon. Como era tradição na época, o primeiro filho herdaria o título nobiliárquico, enquanto o segundo se destinaria à hierarquia da Igreja. Alphonse, no entanto, não tinha qualquer intenção de se tornar Bispo pois achava que era uma obrigação demasiado pesada para ele, decidiu antes encerrar-se num claustro e tornar-se monge. Esse facto tornou necessário que Armand abandonasse a sua ambição de seguir uma carreira militar e ingressasse no clero. Armand du Plessis não era, de todo, adverso à ideia de se tornar Bispo, pois agradava-lhe a vida académica e tinha uma saúde perturbada frequentemente por acessos febris e enxaquecas, o que o tornava pouco adaptado à vida militar. Assim, apesar de não querer, ao início, ser Bispo, acabou por perceber que era no seu melhor interesse.

Em 1606, aos 21 anos, Armand foi nomeado pelo Rei Henrique IV, Bispo de Luçon. Como ainda não tinha atingido a idade mínima obrigatória para o cargo, foi necessário que se deslocasse a Roma para obter uma autorização especial do Papa. Tendo assegurado o acordo Papal, Richelieu foi consagrado Bispo em Abril de 1607. Regressado à sua diocese, foi considerado um reformador, tornando-se o primeiro Bispo Francês a implementar as reformas institucionais previstas pelo Concílio de Trento. Nesta época, Richelieu tornou-se amigo de François Leclerc du Tremblay, um monge Capuchinho que mais tarde se iria tornar o seu mais próximo confidente e conselheiro. Pela sua proximidade a Richelieu e pela cor cinzenta da sua roupa, du Tremblay foi alcunhado de “Eminência Parda”. Mais tarde seria usado por Richelieu como agente em negociações diplomáticas, a maior parte delas, secretas.

Entretanto, Henrique IV faleceu, sucedendo-lhe Luís XIII, de tenra idade, cujo reinado, no seu início foi regido pela sua mãe, Maria de Médicis.

Em 1614, os clérigos de Poitou elegeram Richelieu como seu representante nos Estados Gerais, onde ele defendeu a Igreja vigorosamente, argumentando que esta devia ser isenta de impostos e que os Bispos deviam ter mais poder. Os representantes do povo foram os maiores opositores a este seu propósito. No fim desta assembleia, os representantes do Clero escolheram-no para porta-voz das petições de toda a classe. Pouco depois da dissolução dos Estados Gerais, Richelieu entrou para o serviço de Ana de Áustria, mulher de Luís XIII, como seu confissor.

Richelieu aproximou-se então de Concino Concini, o mais poderoso ministro do reino e, em 1616 foi nomeado Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. A par de Concini, o Bispo Richelieu era um dos principais conselheiros da mãe de Luís XIII, Maria de Médicis, que se havia tornado Regente quando o seu filho de 9 anos ascendera ao trono. Apesar de Luís ter atingido a maioridade em 1614, ela manteve-se como governante do reino, no entanto, as suas políticas, bem como as de Concini, tornaram-se muito impopulares. Como resultado, Maria e Concini começaram a ser as vítimas da intriga da corte, sendo o seu principal inimigo Charles de Luynes. Em Abril de 1617, após uma conspiração de de Luynes, o Rei Luís XIII mandou prender Concini ou matá-lo se resistisse. Concini foi assassinado e Maria de Médicis presa.

Tendo morrido o seu patrono, Richelieu também perdeu o seu poder, sendo demitido de Secretário de Estado e afastado da corte. Em 1618, Luís XIII baniu Richelieu para Avinhão. Ai, o Bispo de Luçon escreveria um catecismo célebre chamado “A instrução do cristão”.

Em 1619, Maria de Médicis fugiu da sua prisão no Chateau de Blois e tornou-se a cabecilha de uma rebelião aristocrática. O Rei e o Duque de Luynes chamaram então Richelieu por pensarem que ele seria capaz de levar a Rainha-Mãe à razão, o que veio a acontecer. As complexas negociações que o Bispo mediou levaram à ratificação do Tratado de Angoulême. Maria de Médicis ficaria em liberdade mas em paz com o Rei, voltando a fazer parte do Conselho Real.

Depois da morte do Duque de Luynes, em 1621, Richelieu começou uma rápida ascensão ao poder. No ano seguinte, Luís XIII nomeou Richelieu para um cardinalato, que foi ratificado pelo Papa Gregório XV a 19 de Abril de 1622. As crises em França, das quais se destaca a rebelião dos Huguenotes, tornaram Richelieu um conselheiro indispensável ao Rei. Depois de ter sido nomeado para o Conselho de Ministros, o Cardeal conspirou contra o Ministro-Chefe, o Duque de La Vieuville. Em Agosto desse ano, La Vieuville foi acusado de corrupção e preso. Richelieu substituiu-o como principal Ministro do Reino.

O Cardeal Richelieu era frequentemente designado pelo título de Ministro Chefe, como resultado, é considerado como o primeiro Primeiro-Ministro do Mundo, no sentido moderno da expressão. Procurou consolidar o poder real e esmagar as facções domésticas, tendo sido um excelso patrono das Artes, tendo fundado a Academia Francesa e renovado a Sorbonne, de que foi Reitor. Tendo restringido o poder da Nobreza, acabou com o feudalismo e transformou a França num Estado centralizado muito forte. O principal foco da sua Política externa foi o combate à hegemonia dos Habsburgos. Apesar de ser um Cardeal Católico, isso não o impediu de fazer alianças com governantes Protestantes com o fim de atingir os seus objectivos. O seu consulado ficou marcado pela Guerra dos Trinta Anos, que envolveu toda a Europa, o que, à escala da época, foi o equivalente a uma guerra mundial. Mas isso é outra história, e sobre ela falaremos num outro dia.