terça-feira, 1 de maio de 2007

O Mercador de Veneza

Sempre considerei que uma das maiores vantagens de escrever é que podemos falar sobre o tema que nos apetece sem ninguém nos interromper, o que, só por si, constitui um poderoso estimulante para a escrita.

Hoje, apetece-me falar sobre uma das minhas peças de teatro preferidas: O Mercador de Veneza, de William Shakespeare. Como não podia deixar de ser, o tema, à semelhança da maior parte dos escritos shakespearianos é político, ou antes, envolve no enredo a descrição de temas que são universais e de todos os tempos, e que nos levam a reflectir profundamente sobre o significado das acções dos personagens e nos colocam em debate interno sobre a nossa atitude perante a vida e sobre a nossa posição sobre este ou aquele tema.

Para os que não gostam de teatro ou não têm paciência para ler o texto da peça, recomendo o excepcional filme de Michael Radford, de 2004, que conta com a participação de Jeremy Irons, Al Pacino, Joseph Fiennes, Lynn Collins e Zuleikha Robinson. Garanto que no final não se sentirão confortáveis enquanto não resolverem dentro de vós os vários dilemas que a história encerra e se calharem a ver o filme acompanhados, encontrarão ali pretexto para várias horas de conversa.

No dia do disparatado cartaz do avião que convidava os imigrantes a partir para outras paragens foi d’ O Mercador de Veneza que me lembrei, não sei porque associações neuronais e dei por mim a reler o pequeno opúsculo da Penguin Books que tenho lá por casa. The Most Excelent Tale of The Merchant of Venice, by William Shakespeare, de que hoje vos trago a sinopse e uma breve análise.


16- O Mercador de Veneza, de William Shakespeare

Escrita possivelmente entre 1596 e 1598, O Mercador de Veneza é uma das peças mais famosas de William Shakespeare. Sendo por vezes classificada como uma comédia, (comédia, naqueles tempos, não tinha exactamente o mesmo significado que tem hoje), partilha alguns aspectos com as restantes comédias românticas de Shakespeare e é frequentemente lembrada pelas suas cenas dramáticas, principalmente a do julgamento e a do solilóquio do 3º acto. Ficou conhecida pela forma como retrata o Judeu Shylock e por ter, com isso, atraído acusações de anti-semitismo.

O personagem que dá o título à peça é o mercador António e não o vilão que acabou por ficar mais famoso, o agiota Shylock, que é uma espécie de anti-herói da história. Apesar de Shylock ser um personagem atormentado, ele também é um atormentador, portanto, cabe à audiência decidir se o vê com desdém ou simpatia. De acordo com isto, esta peça é por vezes classificada como uma das peças problemáticas de Shakespeare.

A peça parece ter sido influenciada ou talvez escrita em reacção à comédia negra imensamente popular de Christopher Marlowe, O Judeu de Malta, que foi escrita por volta da 1589 e revista em 1594. O personagem Shylock parece baseado no Barrabás de Marlowe, cuja filha também se apaixona por um Cristão e é convertida. No entanto, a principal fonte é “Giannetto de Veneza e a Senhora de Belmonte”, do Il Perocone de Ser Giovanni, ao qual Shakespeare adiciona a escolha de três baús e o motivo da libra de carne, que é comum no folclore britânico. Uma peça perdida chamada “O Judeu”, parece também ter sido uma influência. No tempo da escrita da peça, o Médico da Rainha Isabel, Rodrigo Lopez foi acusado de conspirar no envenenamento da rainha, tendo sido preso em Janeiro de 1594, condenado em Fevereiro e executado em Junho. Alguns historiadores e críticos literários afirmam que o julgamento de Lopez terá de alguma forma influenciado Shakespeare. Entre outras fontes que podem ter sido usadas encontra-se o Decameron de Boccacio.


Sinopse

O jovem veneziano Bassanio pretendia viajar até à ilha de Belmonte para cortejar a bela e rica herdeira Portia. Pede ao seu amigo António, um mercador, os três mil ducados necessários para sustentar os seus gastos de viagem como pretendente durante três meses. Como todos os bens de António se encontram embarcados, António dirige-se ao agiota Judeu Shylock para lhe pedir um empréstimo.

Shylock, cheio de raiva por António, na semana anterior, o ter insultado e lhe ter cuspido por ser Judeu, propõe uma condição para o empréstimo. Se António não conseguir pagar o empréstimo até à data combinada, Shylock será livre de tirar uma libra da carne de António de qualquer parte do corpo à sua escolha. Apesar de Bassanio não querer que António aceite uma condição tão arriscada, António, surpreendido pelo que ele vê como um acto generoso do agiota, aceita e assina o contrato. Com o dinheiro na mão, Bassanio parte para Belmonte com Gratiano, outro amigo.

Em Belmonte, Portia não tem falta de pretendentes. O seu pai, no entanto, deixou um testamento em que estipulava que cada um dos pretendentes deveria escolher correctamente um de três baús, um de ouro, outro de prata e outro de chumbo, antes de poder ter a mão de Portia em casamento. Para além disso, cada pretendente devia prometer que viveria o resto da sua vida solteiro no caso de escolher de forma errada. O pretendente que conseguisse ver para além da aparência exterior do baú, encontraria o retrato de Portia no interior do que escolhesse e ganharia a sua mão.

Depois de dois dos pretendentes, os príncipes de Marrocos e Aragão, escolherem de forma errada, Bassanio faz a escolha correcta, a do baú de chumbo. Os outros dois contém versos que gozam com os que fizeram a escolha errada, incluindo a famosa frase “nem tudo o que brilha é ouro”.

Em Veneza, sabe-se que todos os barcos que continham os bens de António se perderam no mar, situação que o deixa sem possibilidades de satisfazer o acordo. Depois da sua filha Jessica fugir de casa com o jovem Lorenzo e parte substancial da sua riqueza para se converter ao Cristianismo, Shylock decide vingar-se. Com a Letra do empréstimo na mão, Shylock manda prender António e levá-lo a tribunal.

Entretanto, em Belmonte, Portia e Bassanio casam-se ao mesmo tempo que o amigo deste, Gratiano, se casa com a criada de Portia, Nerissa. Bassanio recebe uma carta contando-lhe a situação de António. Chocados, os amigos partem para Veneza imediatamente, com dinheiro de Portia para salvar a vida a António. Sem Bassanio e Gratiano saberem, Portia e Nerissa saem de Belmonte para procurar o conselho do advogado Bellario, primo de Portia, de Pádua.

Na corte do Duque de Veneza, tem lugar o julgamento. Shylock recusa a oferta de Bassanio apesar deste aumentar o pagamento para 6000 ducados, o dobro do dinheiro emprestado. Shylock exige a libra de carne de António. O Duque, desejando salvar António mas temendo criar o perigoso precedente de anular um contrato, passa o caso a Baltasar, um jovem Doutor de Leis, que, na realidade, é Portia disfarçada, com o seu escrivão, que é Nerissa disfarçada. Portia pede a Shylock que mostre misericórdia, mas este recusa. Então o tribunal permite a Shylock a extracção da libra de carne.

No preciso instante em que Shylock se prepara para cortar António com a sua faca, Portia aponta uma falha no contrato. A Letra apenas permite a Shylock tirar a carne, e não o sangue, de António. Se Shylock derramasse uma única gota de sangue de António ao cortar a sua carne, de acordo com as leis Venezianas, as suas terras e bens seriam confiscados.

Derrotado, Shylock aceita o pagamento monetário do empréstimo, mas este é-lhe negado. Portia afirma que nada lhe deve ser dado e que, pela sua tentativa de tirar a vida a um cidadão, as propriedades de Shylock devem ser confiscadas, metade para o governo e a outra metade para António, e a sua vida ficará à mercê da decisão do Duque. O Duque permite-lhe sair dali com vida antes que Shylock possa rogar por ela. António fica com o usufruto de metade bens de Shylock até à sua morte, altura em que deverá entregá-los a Jessica e Lorenzo. A pedido de António, o Duque anula a confiscação da outra metade na condição de Shylock se converter ao Cristianismo e deixar o resto da sua propriedade a Lorenzo e Jessica.

Bassanio não reconhece a sua mulher disfarçada. Oferece-se para lhe dar um presente. Primeiro ela declina, mas depois de ele insistir, ela pede-lhe o seu anel e as luvas. Entrega-lhe as luvas sem hesitação, mas só lhe dá o anel depois de muita persuasão por parte de António, pois tinha prometido à sua mulher nunca o perder, vender ou oferecê-lo.

No final, em Belmonte, Portia e Nerissa zangam-se com os maridos antes de lhes revelarem que eram elas o advogado e o escrivão. Depois de todas as personagens fazerem as pazes, tudo acaba bem, excepto para Shylock, e António descobre que três dos seus navios não afundaram e regressaram a salvo.

Discussão

Esta peça é potencialmente perturbadora para as audiências modernas devido aos seus temas centrais, que podem facilmente parece anti-semitas. Os críticos ainda discutem se a peça é em si anti-semita ou se é simplesmente uma peça sobre o anti-semitismo, ou se o cenário estrangeiro e a etnia dos protagonistas é um truque literário para acomodar verdades desconfortáveis.

A sociedade inglesa na era Isabelina tem sido frequentemente descrita como anti-semita. Os judeus ingleses foram expulsos na Idade Média e só puderam regressar no consulado de Oliver Cromwell. Os judeus eram frequentemente caricaturados no teatro Isabelino com narizes aduncos e perucas vermelhas e eram frequentemente caracterizados como agiotas usurários. O exemplo mais conhecido disto foi a peça extremamente popular, de Christopher Marlowe, “O Judeu de Malta”, cujo protagonista é um judeu comicamente malvado chamado Barrabás. Os judeus eram caracterizados no palco como maus, manhosos e gananciosos.

Na Veneza do Século XVI, os Judeus eram obrigados a usar um chapéu vermelho sempre que estivessem em público para que pudessem ser facilmente identificados. Se não cumprissem esta regra, poderiam ser condenados à morte. Os judeus também tinham que viver num gueto protegido por cristãos, supostamente para sua própria segurança. Era suposto pagarem aos guardas.

Muitos leitores vêem a peça de Shakespeare como uma continuação desta tradição anti-semítica. Uma interpretação possível da estrutura da peça seria que Shakespeare quereria contrastar a misericórdia dos principais personagens Cristãos com a ira vingativa do Judeu, a quem falta a graça religiosa para compreender a misericórdia. Simultaneamente também é possível entender a conversão forçada de Shylock ao Cristianismo como um final feliz para o personagem, pois redime o Judeu tanto da sua descrença como do pecado específico de ter querido matar António. Esta leitura da peça caberia certamente na moda anti-semita da Inglaterra Isabelina, mas, não nos esqueçamos que existiam censores.

A maior parte dos leitores e espectadores de teatro modernos vêem esta peça como um apelo à tolerância porque Shylock é um personagem que apela à compaixão. O julgamento de Shylock no final da peça é uma palhaçada de justiça, com Portia a agir como juiz, quando, na realidade, não tinha qualquer direito de o fazer. Assim, Shakespeare não está a pôr em causa as intenções de Shylock, mas o facto de as mesmas pessoas que acusam Shylock de ser desonesto recorrerem a truques e à desonestidade por forma a vencerem. Nesta peça aparece um dos mais eloquentes discursos jamais escritos para o teatro, e sai da boca do suposto vilão na 1ª cena do 3º Acto:

“Não tem um Judeu olhos? Não tem um judeu mãos, órgãos,
dimensões, sentidos, afectos, paixões; (Não é) alimentado com a
mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito
às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios,
aquecido e arrefecido pelos mesmos Invernos e Verões
que um Cristão? Se nos picam, não sangramos?
Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam,
não morremos? E se nos fazem mal, não nos vingamos?
Se somos como vós no resto, assemelhamo-nos a vós nisso.
Se um Judeu faz mal a um Cristão qual é o seu castigo?
Vingança. Se um Cristão faz mal a um Judeu qual deveria ser
o seu castigo pelo exemplo Cristão? Pois, Vingança.
A vilania que vocês me ensinam, eu executarei,
e vai ser duro mas eu hei-de superar a instrução.”

Lendo atentamente, apesar de a peça ser aparentemente ligeira e divertida, as vidas dos personagens Cristãos estão em colapso devido ao seu comportamento imoral e desrespeito pelos seus deveres para com a religião e a lei, ao mesmo tempo, Shylock não engana, não mente, não mata nem rouba, aparentemente nem age com qualquer maldade. A promessa da libra de carne foi um acto de espontânea vontade de António. É certo que dificilmente se pode argumentar pela moralidade da imposição desta cláusula por parte de Shylock, pois ele sabe que a efectivação desta vai matar António, mas de acordo com o comportamento anterior deste, o seu desejo de vingança não só é justificado mas, num certo sentido acaba por ser moral.

Identifica-se, por isso, não um carácter anti-semita na história, mas um ataque às hipocrisias prevalecentes na época, que efectivamente acaba por ser colocado de forma extremamente inteligente dado o contexto da censura na época. Acaba por ser difícil perceber se a leitura simpática de Shylock é devida à mudança de sensibilidade dos leitores ou se Shakespeare, que se deleitava a criar personagens extraordinariamente complexos e multi-facetados procurou deliberadamente esta leitura. Note-se que o penoso estatuto de Shylock na sociedade veneziana é enfatizado na história e que o seu discurso, “Não tem um Judeu olhos?”, praticamente o redime, transformando-o numa figura trágica. Mesmo que Shakespeare não tenha pretendido que a peça tivesse esta leitura, certamente permitiu que ela fosse feita.

Aparece também neste Mercador de Veneza um tema lateral que não é menos moderno, relacionado com a sexualidade dos personagens António e Bassanio, que está enquadrado na matriz poética e teatral Shakespeariana que frequentemente descreve fortes laços de homosocialidade entre homens. A homossexualidade implícita na relação entre António e Bassanio é o segundo tema que grava a matriz da história. A história desta peça é uma história de amor e vingança, é a história do amor de António por Bassanio e do desejo de vingança de Shylock pelas humilhações sofridas às mãos de António. É uma história de extremos.

António é um homem só, cuja vida emocional se encontra concentrada num personagem do mesmo sexo, aparentemente a viragem fatal na sua vida dá-se devido ao seu desespero, não só pela perda de Bassanio mas também porque Bassanio não pode retribuir os sentimentos que ele tem. O comportamento de António indicia idolatria por Bassanio, ao ponto de trocar o seu direito à vida pelo bem-estar da pessoa amada, arriscando tudo pelo outro. Quem também arrisca tudo, apesar de não se dar conta disso, é Shylock, quando, motivado pelo seu desejo de vingança coloca a cláusula fatal no contrato. Ambos parecem personificar as palavras contidas no baú de chumbo de Portia: “Aquele que me escolher, tem que me dar e arriscar tudo o que tem”.

O terceiro tema, muito menos importante na construção do enredo é o tema da fidelidade. O casamento de Portia e Bassanio é feito na condição de ele nunca tirar a aliança. A aliança é o símbolo da fidelidade marital, que era uma obsessão na época Isabelina, uma audiência desse tempo poderia ter visto a importância da entrega do anel ao advogado, (Portia disfarçada), e tê-lo visto como um símbolo do potencial de Bassanio para a infidelidade.

Em suma, “O Mercador de Veneza” é um texto actual escrito há quatrocentos anos, se não leu, não viu no teatro ou no cinema, vá a correr que é imperdível.

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