O Casus Belli
Sabemos que a acção política é diferente da maior parte das ocupações humanas porque é das poucas actividades que pode obrigar o actor a fazer uso de todos os campos do conhecimento técnico, científico e cultural. A acção política, para ser eficaz, para além de depender de uma cultura geral bastante sólida, depende da capacidade de utilizar técnicas e conceitos de áreas tão diversas como a economia, o direito, a psicologia e a diplomacia, entre outras.
Hoje, vamo-nos debruçar sobre dois conceitos importantíssimos para a acção política: O Casus Belli e o Agnus Dei. O primeiro, chega-nos da Diplomacia, o segundo, da Teologia. Ao analisarmos a actuação de indivíduos e grupos de indivíduos na política dos nossos dias, encontramos frequentemente situações em que um ou ambos estes conceitos são aplicados, por vezes com mestria e outras vezes desajeitadamente. Na acção de alguns personagens mais pragmáticos são muitas vezes planeados e colocados como elementos preponderantes e essenciais de uma dada táctica, estando presentes como parte do plano principal ou, de outra forma, semeados como sustentação para um eventual Plano B.
Devemos aprofundar o nosso conhecimento destes conceitos porque a sua identificação precoce nos dá o conhecimento imediato da existência de um móbil oculto ou de um plano mais extenso que aqueles que nos são dados a ver no imediato a partir da informação que nos é disponibilizada directamente. A identificação precoce da preparação de um Casus Belli ou de um Agnus Dei é feita na maior parte das vezes a partir das partes do discurso político que aparentemente são deslocadas do contexto, parecem infundadas ou estão, de um modo geral, relacionadas com um futuro aparentemente longínquo ou com condições aparentemente inacreditáveis de se manifestarem.
A realização com mestria de uma táctica que envolva a utilização de um destes conceitos depende da habilidade que o indivíduo ou o grupo tiver de semear dissimuladamente e com antecipação pequenos elementos (provas ou argumentos, verídicos ou não) que mais tarde poderão ser conjugados por qualquer pessoa alheia à conspiração para atingir a conclusão que os autores pretenderam desde muito tempo antes que os elementos exteriores ao grupo, chegassem.
Quem nunca ouviu outra pessoa exclamar: - Ah! Então é por isso que..(etc...).Terminando com um: - Eu bem me parecia que era estranho, mas, agora, tudo faz sentido.
Pois é, Casus Belli e Agnus Dei. Aí vão eles:
3- Casus Belli
Com a crescente formalização das relações entre os estados que se deu nas últimas décadas do Séc. XIX, acompanhada pela implementação das constituições e pela necessidade cada vez maior de os governantes justificarem as suas acções, surgiu todo um novo conjunto de conceitos destinados a justificar, em termos compreensíveis pelos povos, actos de uns estados em relação a outros. Um destes conceitos é o Casus Belli, um neologismo latino que pretende designar uma “justificação para a Guerra”, etimologicamente, Casus significa “incidente” e Belli significa “de guerra”. Na prática, Casus Belli quer dizer “causa para a guerra”.Conforme dizíamos, este termo, apesar da sua aparente antiguidade, apenas entrou em utilização corrente no final do Séc. XIX com o desenvolvimento da teoria “jus ad bellum”, ou teoria da “guerra justa”.
Usada informalmente, esta expressão refere qualquer causa justa que uma nação possa argumentar para entrar em guerra, é usada ainda para definir situações em que essas razões existem mas a guerra ainda não foi, efectivamente declarada. Formalmente, um governo explicitaria as razões que o fariam entrar em guerra, bem como o seu objectivo ao fazê-la, e os passos que poderiam ser tomados para evitá-la. Dito isto, esse governo estaria a implicar que apenas entraria em guerra em último recurso e que as causas para a guerra eram causas justas.
Historicamente, o Casus Belli foi utilizado para justificar a guerra junto das populações e das elites dirigentes de variados países. Hoje em dia, tem como objectivo maior justificar a guerra junto da comunidade internacional, uma vez que, desde a I Grande Guerra, os incidentes bélicos deixaram de ser vistos como situações que envolvem um pequeno número de intervenientes e passaram a ser vistos como situações que envolvem todo o conjunto da Humanidade.
4- Agnus Dei ou o Bode Expiatório
A variedade e complexidade das línguas em que foram escritos os textos que compõem a Bíblia, bem como a dificuldade que os linguistas actuais têm em determinar com exactidão o significado de algumas palavras homógrafas e homófonas do Aramaico, do Hebraico antigo ou mesmo expressões de calão Grego ou Latino, levaram a que fossem dados sentidos interpretativos a determinadas expressões, conforme o jeito que dava a cada geração de teólogos.
Assim, o Agnus Dei (Cordeiro de Deus), poderia não ter qualquer relação com qualquer animal sacrificial. O erudito Geza Vermes afirma que no Aramaico da Galileia, a palavra “tallia”, tanto pode significar “cordeiro” como “filho masculino”. Assim, quando João Baptista, no seu evangelho afirma: “Contemplem o Cordeiro de Deus, que leva consigo os pecados do Mundo”, poderia muito bem estar a referir-se ao filho de Deus, em lugar do cordeiro sacrificial, no entanto, a ambiguidade serviu para sustentar ao longo dos séculos o conceito de que Jesus teria sido uma espécie de bode expiatório para os pecados da humanidade.
O bode expiatório é, por si, um conceito com muito mais antiguidade. Aparece pela primeira vez no Talmude hebraico (o Antigo Testamento dos católicos), e também aparece ferido desta confusão linguística. Aparentemente, William Tyndale, que traduziu a Bíblia do Rei Jaime de Inglaterra, terá confundido azazel, (um demónio cananita), com ez’ozel, (o bode que parte), e, vai dai, na versão Bíblica (Levítico 16:22), aparecem com dois bodes para sacrificar no Templo de Jerusalém no dia da expiação (Yom Kippur), um deles é queimado e o outro é usado de forma singular: O sacerdote coloca-lhe a mão na cabeça e confessa os pecados do povo de Israel, depois, soltam o bode para que ele fuja pelo deserto, levando os pecados com ele.
Na teologia cristã, esta história é vista como uma premonição do papel de Jesus, (o Cordeiro de Deus), como redentor dos pecados da humanidade, na versão do Talmude, o tal do azazel ainda é empurrado do alto de um penhasco. Parece que é desta confusão linguística que nasce a imagem de um diabo com cascos de bode e chifres.
Usado metaforicamente, o bode expiatório designa alguém escolhido para carregar as culpas de um qualquer acontecimento nefasto. Em inglês, a palavra “scapegoating”, para a qual não temos tradução exacta, mas que significa qualquer coisa como o acto de lançar sobre outro ou outros a culpa de uma multitude de problemas, deriva do termo “scapegoat” (bode expiatório). O bode expiatório é uma espécie de mártir de sinal negativo, que está carregado de todos os males, em lugar de ser um símbolo das virtudes. De uma pessoa ou grupo transformado em bode expiatório também se diz que foi “tramado”.
Não são só as religiões que se debruçam sobre este conceito. È tema da política, da sociologia e da psicanálise. A criação de bodes expiatórios tem sido um instrumento importante da propaganda política, envolvendo a discriminação de grupos minoritários e culpando-os de todos os males do mundo. A táctica mais frequentemente utilizada é a de caracterizar todo um grupo de acordo com o comportamento de uns poucos dos seus elementos, gerando assim, na totalidade do conjunto, uma culpa por associação. Por culpa de uns, todos são implicados.
Esta técnica é um meio bastante eficiente, se bem que temporário de consolidar a solidariedade no interior de um grupo quando esta não consegue ser atingida de uma forma mais construtiva. O alvo, (indivíduo ou grupo), passa a ser visto como uma figura absolutamente aberrante, sem qualquer possibilidade de redenção. À medida que a campanha avança, um conjunto cada vez maior de culpas de pequenos acontecimentos parece, com toda a lógica, ser da autoria de uma única entidade e a sua exclusão acaba por se tornar a única solução legítima.A teoria da psicanálise sustenta que pensamentos ou sentimentos indesejáveis são inconscientemente projectados no outro, que se transforma no bode expiatório dos nossos próprios problemas. Este conceito pode ser estendido à projecção por grupos, em que se dá a transformação de um indivíduo no bode expiatório dos problemas do grupo.
O Antropólogo René Girard deu-nos uma nova definição da teoria do Bode Expiatório. Baseado na assunção de que á a Humanidade e não Deus, quem tem um problema com a violência. Os Humanos são mobilizados pelo desejo daquilo que os outros possuem, (desejo mimético). Isto causa uma triangulação do desejo e resulta num conflito entre partes que desejam uma determinada coisa. Este contágio mimético aumenta até ao ponto em que a sociedade ou o grupo está em risco, é neste ponto que o mecanismo do Bode Expiatório é despoletado. É neste ponto que há uma pessoa que é identificada como causa do problema e é expulsa ou morta pelo grupo. Essa pessoa é o Bode Expiatório.
Pedro Estadão
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